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Eleitas deputadas federais, indígenas preveem embate com Salles na Câmara

Sonia Guajajara (PSOL-SP) Célia Xakriabá (PSOL-MG) é a primeira indígena eleita deputada federal por Minas Gerais - Arte/UOL
Sonia Guajajara (PSOL-SP) Célia Xakriabá (PSOL-MG) é a primeira indígena eleita deputada federal por Minas Gerais Imagem: Arte/UOL

De Universa, em São Paulo

04/10/2022 04h00

As lideranças indígenas Sonia Guajajara e Célia Xakriabá já foram até o Tribunal Penal Internacional, em Haia, na Holanda, para apresentar um dossiê contra Jair Bolsonaro (PL), elencando as ações prejudiciais aos povos indígenas e ao meio ambiente praticadas durante o governo. Na época, 2019, o ministro do Meio Ambiente era Ricardo Salles, do mesmo partido do presidente, alvo das críticas delas nesse e em episódios posteriores. A partir de 2023, esse embate estará mais intenso e no Congresso: os três foram eleitos deputados federais no último domingo (2).

Sonia e Célia foram as duas candidatas eleitas pelo PSOL, respectivamente por São Paulo e Minas Gerais, pela chamada bancada do cocar, um movimento da Apib (Articulação dos Povos Indígenas do Brasil) envolvendo 30 candidaturas indígenas —25 delas de mulheres.

Ex-candidata à vice-presidência da República em 2018 pelo PSOL, Sonia será a primeira representante indígena do Estado na casa.

Mais do que formar uma bancada do cocar, ela afirma que as indígenas eleitas pretendem se aliar com outros parlamentares e criar uma bancada da terra para bater de frente com a bancada ruralista. Para isso, estará ao lado de ambientalistas, feministas e deputados sem-terra.

"Será um Congresso difícil e mais conservador, mas também estaremos com uma bancada forte. Vamos levar nossa luta para a institucionalidade."

Salles é um dos que está no alvo de Sonia, que promete ser "pedra no sapato" do ex-ministro. "Ele deveria se envergonhar de sair candidato depois do que fez no Ministério do Meio Ambiente, como anistiar desmatadores e permitir a extração de madeira ilegal. A gestão dele foi trágica, e ele vai ser uma pessoa perigosa para os direitos indígenas no Congresso", afirma a ativista a Universa.

Sonia Guajajara foi eleita para o cargo com 156.966 votos. Nascida em 1974 em Araribóia, no Maranhão, foi coordenadora da Apib e é formada em letras e em enfermagem, pós-graduada em educação e mestra em cultura e sociedade.

"Essa margem de votos estava no nosso horizonte, era uma vontade. Trabalhamos muito para nossa candidatura ser eleita", disse. "Ganhar no maior colégio eleitoral no Brasil é reconhecimento da luta e da urgência das nossas pautas."

Congresso terá 'força de pinturas e cocares'

Célia Xakriabá também comemorou o fato de ter sido a primeira indígena eleita no estado de Minas Gerais. A liderança do povo Xakriabá obteve 101.154 votos. "Nossa candidatura reuniu viabilidade, preparo e ideologia —porque parecia que as candidaturas, em 2022, não poderiam ser ideológicas. Mas eu estava com os pés no chão. Fiquei surpresa com esse resultado, rinha colocado para mim que eram as forças ancestrais que iriam decidir", diz Célia, em entrevista a Universa.

"Nossa campanha teve uma linguagem e energia diferentes porque foi inspirada nas minhas vestimentas e pinturas corporais", afirma ela, que pretende levar os adornos indígenas para o Congresso Nacional. "Vamos entrar naquele lugar cheio paletós com a força das nossas pinturas e com nosso cocar."

Célia vem do território Xakriabá, no Norte do estado mineiro, e foi a primeira mulher indígena a entrar no doutorado pela UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais).

Durante a campanha, a ativista indígena renunciou à doação de R$ 15 mil que sua campanha recebeu de Luciano Huck, apresentador da Globo, e R$ 20 mil de Candido Botelho Bracher, ex-presidente do Itaú Unibanco, por não estarem de acordo com os princípios do partido.

Sobre os possíveis embates que terá com deputados refratários ao ativismo ambiental, ela afirma que a bancada do cocar seguirá fazendo o que já faz há quase quatro anos. "Ricardo 'Males' decidiu passar boiada em cima de nossos territórios e de nossos povos. Por isso, o movimento indígena foi o único a se levantar na pandemia: ou a gente morreria de covid ou pela destruição das terras", diz.

"Vamos ser uma bancada combativa. Estamos preparadas para 'mulherizar', 'indigenizar' e 'reflorestar' a política. Antes, a gente entrava no Congresso com spray de pimenta; agora vamos entrar pela porta da frente. Vamos chegar para ocupar e incomodar com nossa voz, narrativa e identidade" Célia Xakriabá

A deputada eleita diz que as pautas prioritárias da bancada do cocar serão a demarcação, a proibição da mineração nas terras indígenas e as políticas contra o desmatamento.

É o que reforça Sonia: "Nossa prioridade é articular a demarcação das terras indígenas. Temos 27 estudos de demarcação concluídos que foram devolvidos para a Funai [Fundação Nacional do Índio] pelo governo Bolsonaro. Vamos articular a volta dessas demarcações. Independentemente se Lula for eleito, vamos pressionar o Estado brasileiro para demarcar nossas terras", disse ela, que também mencionou como prioridade a proteção do meio ambiente e o fortalecimento dos órgãos de fiscalização e controle de desmatamento.

Outras eleitas indígenas: uma aliada e uma bolsonarista

Fora da articulação da Apib, outras duas mulheres indígenas foram eleitas para a Câmara dos deputados. Juliana Cardoso (PT-SP), que se reconhece como indígena, foi eleita com 125.517 mil votos.

A bolsonarista Silvia Waiãpi, por sua vez, foi eleita com 5.435 votos, mas atingiu o suficiente para ser eleita. Agora, passa a ser a única parlamentar indígena pelo Amapá. Joenia Wapichana (Rede-RR), que foi a única parlamentar indígena nos últimos quatro anos no Congresso, não conseguiu se reeleger mesmo com os 11.221 votos recebidos.

Kleber Karipuna, diretor executivo da Apib, afirma que a deputada eleita Silvia Waiãpi não tem reconhecimento como liderança representativa dos povos indígenas.

"Ela trabalha numa linha totalmente diferente da nossa e é do PL, mesmo partido do presidente que atacou os interesses indígenas quando estava no governo. O debate e embate dentro do Congresso com as nossas deputadas vai ocorrer a depender de como vai ser sua postura. Nossa linha é sempre de defesa dos povos indígenas", declarou.

Universa procurou Silvia e pediu uma entrevista, mas não houve resposta à solicitação até a publicação deste texto.

Kleber reforça que as parlamentares da Apib vão ter como diretrizes as pautas que já são trazidas pelo movimento indigenista. "A demarcação de terras indígenas é histórica e permanente."

Associação agora mira em eleições para prefeito

O diretor executivo da Apib também comentou a eleição de figuras que falam abertamente contra a demarcação de territórios indígenas.

"Não houve, infelizmente, a renovação que a gente esperava na Câmara, que elegeu muitos parlamentares conservadores de extrema-direita e que votam contra os direitos indígenas", disse. "Vamos ter trabalho em dobro."

Sonia e Célia devem atuar em conjunto com parlamentares aliados da Frente Parlamentar Mista pelos Povos Indígenas, um legado de Joenia, lembra Kleber.

"Essa pode ser uma estratégia de defesa para fortalecer e trazer, dentro do contexto do Congresso, possíveis aliados. Além dos partidos de esquerda, vai ser necessário dialogar com o centro", analisa.

No geral, a avaliação da eleição das suas deputadas foi positiva, apesar de o resultado da eleição não ser o que a organização esperava.

"Nossa expectativa era ter alcançado representativa nas assembleias legislativas, mas não elegemos deputadas estaduais. Nossa estratégia, porém, não é focada apenas em 2022, é um movimento a longo prazo. Estamos qualificando nossos quadros e pensando no protagonismo indígena nas prefeituras, em 2024, mirando também nas eleições de 2026."