Lula diz que presidente não pode legalizar aborto: quem altera essa lei?
Durante um encontro com representantes de igrejas e religiosos em São Paulo, a campanha do ex-presidente Lula (PT) divulgou uma carta a evangélicos nesta quarta-feira (19). No documento, Lula voltou a se dizer contra o aborto e afirma que "tem compromisso com a vida plena em todas as suas fases".
"Sou pessoalmente contra o aborto e lembro a todos e todas que este não é um tema a ser decidido pelo Presidente da República e sim pelo Congresso", escreveu.
Um dia antes, na terça-feira (18), o candidato à presidência da República concedeu entrevista ao Flow Podcast e reiterou seu entendimento de que a legalização ou proibição do aborto deve ser uma discussão do Legislativo, e não do Executivo.
Candidatos à Presidência são sempre questionados sobre o tema, considerado espinhoso. Apesar de, na maioria das vezes, eles fugirem das discussões, o assunto sempre aparece e, dependendo da resposta, causa comoção contra ou a favor de cada um deles. Além de Lula, Jair Bolsonaro (PL) também faz questão de frisar que é contra, com medo de perder uma fatia do eleitorado.
Mas, afinal, um presidente tem o poder de mudar a atual lei brasileira sobre aborto?
A advogada Gabriela Rondon, professora do IDP (Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa) e membro do comitê coordenador do Consórcio Latino-Americano contra o Aborto Inseguro, afirma que, sozinho, o chefe de Estado não pode alterar a lei atual. "Não é uma atribuição do Executivo, que tem papel muito importante de garantir o que já está na lei", afirma.
Hoje, o Brasil permite a interrupção da gravidez em três situações: em casos de estupro, de risco à vida da mulher e de anencefalia.
Uma alteração na lei atual só poderia vir do Legislativo, ou seja, de deputados federais ou senadores, com um projeto de lei que altere o Código Penal; ou do Judiciário —como uma decisão do STF (Supremo Tribunal Federal)—, trazendo novas interpretações da lei atual.
No primeiro caso, um parlamentar ou um grupo deles precisa criar uma proposta, que teria de ser aprovada por uma comissão e depois pelo plenário da casa em questão para seguir tramitando. Se aprovada, iria para uma comissão e depois para o plenário da outra casa. Apenas se for aprovada em todo esse percurso é que chega para a sanção presidencial. E o presidente ainda pode vetar. Aí, começaria um novo trâmite, já que as casas podem derrubar o veto.
Para o próximo mandato, como as bancadas do PL, partido publicamente contra o aborto, são a maioria tanto na Câmara dos Deputados quanto no Senado —onde o partido terá o dobro de senadores eleitos em comparação com o PT—, dificilmente um projeto nesse sentido seria aprovado nos primeiros passos.
Quais as funções diretas de um presidente em relação ao aborto
"O presidente pode ter influência nesses dois processos, mas não é direta. No primeiro caso, pode criar a proposta de lei que descriminaliza o aborto. No segundo, o Executivo pode ser ouvido neste processo. Existe, então, essa circulação de poderes", explica Gabriela.
A cargo unicamente do presidente, diz a especialista, estão possíveis estruturação do acesso à política de aborto e definição de suas diretrizes, mas sempre seguindo o que for decidido por outros poderes.
"O que pode ser atribuição do presidente é estruturar a política pública de saúde ao, por exemplo, definir quem vai chefiar o Ministério da Saúde, o que vai impactar na maneira como o acesso ao serviço se dará, se facilitando ou gerando obstáculos para sua execução.", diz.
Gabriela relembra que mesmo Bolsonaro, que se posiciona contra o aborto, fez uma tentativa, pelo Ministério da Saúde, de desmantelar o que está previsto em lei com relação ao aborto legal.
Em junho de 2022, a pasta criou uma cartilha que previa fazer uma investigação contra mulheres que alegassem ter sido estupradas e solicitassem a interrupção da gestação. Três meses depois, o governo suprimiu o trecho do documento que dizia que "todo aborto é crime". E a lei, em nenhum momento, foi modificado.
Tema é usado como "armadilha" durante eleições
Para Gabriela, durante a campanha política, o tema é usado como uma armadilha, especialmente por setores da direita conservadores.
"Há um debate bastante inflamado para este tema, que é delicado. Só podemos ter uma discussão razoável sobre a descriminalização do aborto de maneira sóbria e serena, e não é isso que acontece durante as eleições."
"Não é um momento propício para se discutir o tema porque qualquer tentativa só gera intensificação das posições", analisa. "Frases curtas não permitem entrar na complexidade que o assunto exige."
Em países vizinhos, mudanças de lei levaram anos
Recentemente, dois vizinhos do Brasil descriminalizaram e legalizaram o aborto com processos diferentes.
Na Argentina, a descriminalização aconteceu por meio de um projeto de lei aprovado pelo Congresso Nacional, criado e enviado ao Congresso pelo presidente Alberto Fernández. "Ele enviou a proposta em 2020 para cumprir com um compromisso de campanha ligado a uma pauta histórica do movimento feminista. Mas a aprovação se deu pelo Legislativo, Câmara e Senado argentinos", diz a advogada.
Após 12 horas de debate, em 30 de dezembro de 2020, os senadores argentinos decidiram legalizar o aborto até as primeiras 14 semanas de gestação. Foram 38 votos a favor da legalização, 29 contra e uma abstenção.
Na Colômbia, o processo de legalização foi judicial. A Corte Constitucional do país, equivalente ao STF, foi quem cravou as duas decisões positivas ao procedimento.
Até 2006, o aborto era completamente criminalizado no país. Foi quando a corte incluiu as três possibilidades de aborto legal: em casos de gravidez por estupro, malformação fetal e risco à vida da gestante. "Só em 2022 houve a decisão de descriminalizar o procedimento até a 24ª semana de gestação", diz Gabriela.
Neste caso, a decisão também só ocorreu após longos debates: a sessão em que os juízes decidiram pela legalização durou mais de oito horas de debate. A decisão foi tomada com maioria simples, de 5 votos favoráveis a 4.
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