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ANÁLISE

Annie Ernaux escreve sobre vivências que muitas mulheres precisam silenciar

A escritora Annie Ernaux  - Ulf Andersen/Getty Images
A escritora Annie Ernaux Imagem: Ulf Andersen/Getty Images

Gabriela Mayer

Colaboração para Universa, em São Paulo

06/10/2022 16h21

O aborto ainda era proibido na França quando Annie Ernaux decidiu interromper uma gestação inesperada. Era 1963, a escritora estava com 23 anos, havia acabado de conhecer o namorado e tinha convicção de que um filho, naquele momento, não era nem desejo nem opção. Quase quatro décadas depois, Ernaux colocou essa experiência no papel. Em "O Acontecimento" (editora Fósforo), publicado no Brasil no início deste ano, ela narra em detalhes como levou o procedimento adiante e desenha com palavras duríssimas a sensação de uma vivência clandestina.

Ao anunciar o Nobel de Literatura a Annie Ernaux nesta quinta-feira (6), a Academia Sueca destacou a coragem da francesa de encarar "os estranhamentos e os constrangimentos coletivos da memória pessoal". Para as mulheres, ela entrega evidentemente isso: a franqueza de lembranças intimamente pessoais, mas compartilhadas por tantas de nós. Por meio de sua ficção, ela oferece ferramentas para colocarmos em perspectiva e assentarmos internamente a crueza de experiências solitárias e daquilo que não pode ser dito.

Em "O Acontecimento" isso está mais do que claro: a partir de seu próprio aborto, Ernaux dá contornos a um país (como o nosso) em que a lei é esmagadora e sufocante para os corpos femininos. Sem minimizar a dor do procedimento ou das etapas que dão errado depois de encontrar a fazedora de anjos que vai viabilizá-las, a autora desloca o nosso olhar, de forma habilidosa e sem obviedades, para a dor de estar na clandestinidade e de ter seu corpo controlado.

Ela é direta ao dizer que para ela o aborto era um procedimento perfeitamente realizável e que não demandava nenhuma coragem especial, mas ao fazê-lo se depara com um peso inesperado e arrebatador —o do Estado, do olhar alheio e do silêncio absoluto.

A ficção de Annie Ernaux brinca com as lembranças e tensiona a memória individual e a memória coletiva. Em "O Acontecimento", isso ganha ainda mais peso, já que o não dito tem potencial para nublar as recordações, para confundir os fragmentos vividos e os inventados. Esse jogo, no entanto, não é exclusividade deste livro e é a tônica de sua obra.

Dela, mas de todas nós

Em suas outras três publicações já disponíveis no Brasil —"O Lugar", "Os Anos" e o recém-lançado "A Vergonha" (todos da editora Fósforo), a memória é a protagonista. Alguns críticos classificam seus livros como autossociobiografias, porque dizem dela, mas dizem também do todo. As histórias que ela conta falam de um tempo, de um território, de um contexto, de um modo de se relacionar e de viver.

"O Lugar" foi a obra que a fez conhecida e caminha por essa corda bamba, por essa estrada estreita que é a busca da impessoalidade nos acontecimentos pessoais. Parece paradoxal, e é. É o que traz potência a seus escritos: a admissão de que as grandes narrativas, sejam de um grupo ou só nossa, recaem sobre cada um de maneiras diferentes. E os relatos podem ser complementares, mas também podem ser divergentes.

Annie Ernaux descortina sua família, sua juventude, seus pais e as violências que viu, ouviu e sentiu. Em "O Lugar", seu pai está no foco, como figura concreta e simbólica. Na reunião de memórias da autora, o genitor representa tantos outros trabalhadores braçais que também viviam em casas sem banheiro e não sabiam bem como se comportar à mesa. Ele é alguém que teve uma vida de início camponês e de sequência operária, depois comerciante.

Em uma França de castas, de classes marcadas, o pai alcançou estabilidade social e econômica suficiente para que a filha frequentasse a universidade. A mudança de ares e o contato com uma burguesia intelectualizada que os estudos trazem a Annie Ernaux são implacáveis nos efeitos na memória e um abismo social se abre entre os dois, pai e filha.

Ela é agora uma mulher letrada, cosmopolita. Seu passado provinciano, ainda presente e latente na figura do pai, é incômodo e, por vezes, atormentador. Mas, no meio do caminho, há um lugar possível, uma ponte que se constrói pelas palavras. A linguagem, que dá a ela o poder de criar, narrar e lembrar, também baseia esse espaço físico e simbólico de identidade e reconhecimento. São essas palavras, tão potentes, que celebramos agora com a maior honraria da literatura mundial, o Prêmio Nobel.

Annie Ernaux é uma das autoras internacionais confirmadas pela Flip, a Festa Literária Internacional de Paraty, e estará no Brasil em novembro. Sua vinda ganha holofotes com o anúncio do Nobel, mas quem já conhecia seus livros certamente estava ansioso por ouvi-la mesmo antes do prêmio. Seus livros demoram a sair da gente, e a intensidade deles nos desafia a pensar como construímos aquilo que somos, como lidar com o passado que não suportamos e como ser diferente quando nossos desejos são conflitantes com o tempo e o espaço em que vivemos.

Gabriela Mayer é criadora do projeto "Põe na Estante", plataforma multimídia de conteúdo literário.