'Feto jorrou como granada': por que a vida de Annie Ernaux lhe rendeu Nobel
O Nobel de Literatura concedido a Annie Ernaux é carregado de significado para as mulheres: não só a autora de 82 anos é a primeira francesa a receber a láurea, mas ela foi concedida a uma obra marcadamente feminista. As memórias de Ernaux —a própria vida é a base de tudo o que escreve— partem de acontecimentos viscerais para falar da França, do contexto histórico e, principalmente, das violências contra a mulher que permeiam e deixam marcas indeléveis nas nossas vidas, em qualquer país.
Abaixo estão alguns exemplos de passagens em que a Ernaux fala de sofrimentos femininos universais —como o de enfrentar um aborto clandestino e expelir um feto "como uma granada", sem saber que teria de dar um destino a ele depois de pedir à amiga que cortasse o cordão umbilical com uma tesoura.
As obras citadas, editadas em português pela editora Fósforo, podem ser encontradas nas livrarias do país. Em novembro, a autora virá ao Brasil participar da Festa Literária Internacional de Paraty.
Aborto clandestino, em "O acontecimento"
De forma gráfica e objetiva, a autora revisita o trauma de um aborto clandestino a que se submeteu aos 23 anos, em 1963, quando a interrupção da gravidez ainda era considerada crime na França. O desespero e as negativas de profissionais de saúde em ajudá-la — "moças como eu estragavam o dia dos médicos", ela diz — levam Annie a "agir sozinha". "Eu não tinha saída", escreve no livro lançado em 2000, que chegou neste ano ao Brasil.
"Saber que me preparava para fazer o que tantas outras já tinham feito antes de mim me dava forças", diz ela.
Me deitei na cama e introduzi com cuidado a agulha de tricô no meu sexo. Eu tateava sem encontrar o colo do útero e parava logo que sentia dor. Percebi que não conseguiria sozinha. Minha impotência me desesperava. Eu não era capaz" Annie Ernaux em "O Acontecimento"
A escritora permeia o livro com justificativas sobre a decisão de compartilhar história tão brutal: "Se eu não relatar essa experiência até o fim, estarei contribuindo para obscurecer a realidade das mulheres e me acomodando do lado da dominação masculina do mundo". Ela vai, então, até o fim:
"Eu empurrava com todas as minhas forças. Aquilo jorrou como uma granada, num esguicho d'água que se espalhou até a porta. Vi um bonequinho pender de meu sexo na ponta de um cordão avermelhado. (?) Peguei com uma mão —era estranhamente pesado— e avancei no corredor apertando-o entre minhas coxas. Eu era um animal".
A garota chama baixinho uma amiga, e as duas ficam ali, o feto entre as pernas de Annie, sem saber o que fazer. É preciso cortar o cordão.
"Ela pega a tesoura, não sabemos em que lugar cortar, mas ela o faz. (?) Choramos silenciosamente. É uma cena sem nome, a vida e a morte ao mesmo tempo. Uma cena de sacrifício. Não sabemos o que fazer com o feto. O. vai até seu quarto pegar um saco de torradas vazio e eu o ponho dentro. Vou até o banheiro com o saco. Parece que tem uma pedra lá dentro. Viro o saco na privada. Puxo a descarga."
Tentativa de feminicídio contra a mãe em "A Vergonha"
A menina Annie não tinha completado 12 anos quando precisou salvar sua mãe da morte. O assassino era seu pai. O episódio abre o livro "A vergonha", de 1997, que se desdobra em memórias picotadas pelo trauma e ilustra o silenciamento que ronda a violência contra a mulher. O casal permaneceu junto até a morte dele, 15 anos depois.
"Meu pai tentou matar minha mãe num domingo de junho, no começo da tarde. Eu tinha ido à missa das 11h45, como sempre fazia. (?) Minha mãe estava de mau humor. A discussão que ela tinha começado com meu pai logo que se sentou durou toda a refeição. (?) Meu pai ficou sentado à mesa, sem responder, com o rosto virado para a janela. De repente, começou a tremer de modo convulsivo e ficou ofegante. Ele se levantou e eu o vi segurar minha mãe com força e arrastá-la para o café aos gritos, com uma voz rouca, que eu nunca tinha ouvido."
A escritora conta que fugiu para o andar de cima e se jogou na cama, a cabeça no travesseiro. E então ouviu os berros da mãe: "Filha, filha!".
"Desci correndo as escadas e gritei, com toda força: 'Socorro!'. Na adega mal iluminada, meu pai agarrava minha mãe pelos ombros, ou pelo pescoço. Na outra mão, segurava a pequena foice de cortar lenha que ele arrancara do pedaço de madeira no qual ela costumava ficar cravada. A partir daqui, só consigo me lembrar dos soluços e dos gritos."
Em outra passagem, ela diz não esperar ajuda da psicanálise nem de uma terapia em família: "Dizer que 'se trata de um trauma familiar' ou que 'os deuses da infância desabaram naquele dia' não basta para explicar uma cena de que só a expressão que me ocorreu na época poderia dar conta: afundar na desgraça. As palavras abstratas, aqui, permanecem acima de mim".
O desejo por um homem 30 anos mais novo, em "O Jovem"
A obra mais recente de Ernaux, de 2022, chegará ao Brasil com a própria autora, em novembro, para lançamento na Flip. Em "O Jovem", ela narra o socialmente "inapropriado" relacionamento que teve aos 54 anos com um homem três décadas mais novo, enquanto reflete sobre o desejo feminino, o tempo, a diferença entre classes sociais e também o papel da mulher na sociedade francesa dos anos 1990. O trecho a seguir foi antecipado pela editora Fósforo:
"Meu corpo não tinha mais idade. Era necessário o olhar pesado e reprovador de clientes ao nosso lado num restaurante para que eu me desse conta desse corpo. Olhar que, longe de me envergonhar, reforçava minha determinação de não esconder meu relacionamento com um homem 'que poderia ser meu filho', enquanto qualquer sujeito de cinquenta anos podia se exibir com uma moça que claramente não era sua filha sem nenhuma reprovação."
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