Parto, ressuscitação e resgate: a brasileira que salva vidas em Londres
O ano de 2003 seria apenas um período de experiências diferentes para a carioca Priscila Currie, 40, antes de ela começar a faculdade no Rio de Janeiro. A jovem de então 20 anos embarcou para o Reino Unido, onde se dedicou a um voluntariado, apaixonou-se por Londres e não voltou mais.
Na mala, ela também carregava seu sonho de trabalhar na área médica. No outro lado do Atlântico, conheceu a paramedicina, profissão que não existe por aqui, e igualmente se encantou. Foi a primeira brasileira a se formar no curso e hoje é funcionária do NHS, o sistema de saúde do governo inglês.
Nas redes sociais, Priscila coleciona seguidores - são 35 mil apenas no Instagram. Conhecida como "Priscila Paramédica", também abriu uma empresa para ensinar primeiros socorros. A seguir, ela conta um pouco mais sobre seu dia a dia sem rotina.
"Trabalhar com medicina de emergência era um sonho de infância"
"Com 20 anos, vim para a Inglaterra sozinha. Meus pais queriam que eu e minha irmã, Diana, tivéssemos uma vivência no exterior. Ela foi para o Japão e, no ano seguinte, escolhi o Reino Unido. Nasci cidadã inglesa, com dupla nacionalidade, pois meu pai nasceu na Escócia.
O plano era ficar um ano para aprender inglês e voltar para o Brasil. Acabei me apaixonando pelo jeito britânico e gostei tanto de Londres que resolvi morar aqui. Trabalhar com medicina de emergência era um sonho de infância. Quando vim cá e vi os paramédicos, tive certeza de que era isso que queria para mim. Frequentei a faculdade St George's University of London. Cursei Ciências Paramédicas, curso universitário que não existe no Brasil.
Hoje trabalho para o sistema único de saúde aqui, o NHS (National Health System), que no Brasil equivale ao SUS. Inclusive, o SUS foi baseado no NHS. Financeiramente falando, é um emprego que traz muita segurança. O salário sobe de acordo com a sua responsabilidade e todo ano você ganha um aumento. Trabalhar para o setor particular e privado até paga mais, mas você tem menos segurança no emprego.
No Brasil, o que chega mais perto do que faço é o SAMU, com os socorristas, porém o estilo de trabalho é totalmente diferente. Enquanto no Brasil há médicos e enfermeiros, as nossas ambulâncias têm o paramédico e o assistente de paramédico.
A paramedicina é uma profissão que exige uma pessoa que consiga trabalhar sob pressão, que tome decisões rápidas. Minhas decisões podem afetar totalmente o que vai acontecer com o paciente, não só no sentido de vida e morte, mas em relação à saúde a longo prazo, dependendo do tratamento que eu decidir. Tenho que tomar decisão às vezes muito difícil em apenas dois segundos.
Tenho muito orgulho de ter sido pioneira entre os brasileiros na área, aqui no Reino Unido, ainda mais sendo mulher, porque, antigamente, essa era uma profissão de homens.
"Aqui polícia, bombeiros e paramédicos trabalham juntos"
Atuo sozinha na minha viatura. Por ser menor, é a primeira a chegar a qualquer lugar. Em Londres, o trânsito é horrível, e eu consigo driblar e chegar antes de todo mundo. Sou chamada geralmente para as categorias 1 ou 2, que são as piores, de risco iminente de morte ou morte confirmada. Ou quando uma mulher está para parir.
Aqui, polícia, ambulância, corpo de bombeiros e paramédicos trabalha muito juntos e nos comunicamos diretamente. Quando o chamado é uma situação que pode me colocar em risco, espero a polícia. Por exemplo, quando tem uma briga, um esfaqueamento, alguma coisa perigosa, não posso atender até a polícia chegar ao local.
Fico no meu plantão por 12 horas. E passo 12 horas lidando com o drama alheio. Então, há desde acidentes bobos que poderiam ter tido consequências desastrosas, até coisas muito tristes e marcantes que a gente nunca esquece.
É tipo um regime de quartel. Como uso uma farda, muitas vezes me sinto como se tivesse um exército, porque é tudo cronometrado: tenho 15 minutos para preparar o meu carro. Se o chamado for uma ocorrência de categoria dois, eu tenho até 20 minutos pra chegar. Se for uma emergência de categoria 1, tenho até sete minutos pra chegar ao local.
Depois que a ambulância leva o paciente para o hospital, tenho 20 minutos para ficar apta a atender outra emergência. Então, é tudo muito controlado. Ou seja, o controle e a rotina são iguais todos os dias, porém, as emergências que atendo são diferentes.
Paramédicos têm treinamento de direção avançada que nos permite dirigir com a sirene, em alta velocidade. Tenho uma carteira de motorista especial que me permite fazer essas coisas enquanto dirijo a minha viatura, mas é claro que eu só posso dirigir assim enquanto estiver atendendo uma emergência.
De parto a velhinhos carentes: como é a rotina da paramédica
O lado mais bacana da minha profissão é pegar alguém que está totalmente desesperada, que perdeu todas as esperanças, e chegar lá e acalmar essa pessoa, ajudá-la, conversar e ver o que pode fazer, e sentir uma diferença imediata no paciente - seja alguém com crise mental, problema físico, vítima de violência doméstica ou uma pessoa que foi atropelada por ônibus.
E mesmo aqueles pacientes que a gente não consegue salvar, a possibilidade de dar um apoio imediato à família e poder explicar que a gente tentou, que fez tal coisa, então isso pra mim é muito gratificante, sabe?
Quando a gente consegue trazer uma pessoa de volta, por exemplo, se ela retoma sua vida normal, seis meses depois, recebemos uma carta dizendo que "fui responsável pela vida daquela pessoa'. É legal sentir que você realmente fez a diferença e ser reconhecido por isso.
Certa vez atendi um menino, de 4 anos, que fez uma cirurgia para retirar as amígdalas. Ele foi pra casa depois da cirurgia e sofreu uma complicação, tendo um sangramento ruim. Quando cheguei lá, o pai estava com o garoto no colo. Ele já estava branco, praticamente não respirando. Identifiquei a gravidade do negócio, comecei a tratá-lo. A ambulância maior chegou em questão de dois minutos.
Peguei o menino no colo, entrei com ele na ambulância, já coloquei um acesso venoso e avisei o hospital que a gente estava indo, que ele precisava de sangue. No hospital, esse menino conseguiu ser ressuscitado e o médico me falou que, se eu tivesse chegado três minutos depois, não teriam conseguido salvá-lo.
Uma semana depois o menino já estava em casa. Fui visitá-lo, a família me agradeceu. Levei um brinquedo pra ele... Isso é muito marcante: ver uma criança desfalecida, que está nas últimas, os pais desesperados, sangue pra tudo quanto é lado, e você consegue se manter calmo e fazer a coisa certa. É incrível!
Também me recordo de uma senhora grávida do quinto filho, que estava indo para o hospital e que sofreu um acidente no caminho. Apesar de ela e o marido não terem se machucado, não havia como chegarem ao hospital, então ligaram para a ambulância porque ela já estava em trabalho de parto. Chovia naquele dia, e estava bem frio. Quando cheguei, a paciente falava: 'Está saindo. O bebê vai sair, bebê vai sair'.
Abri a porta do carro, coloquei a mulher sentada no banco do passageiro. Ela abriu as pernas para fora do carro, eu estava na chuva. Ela colocou uma das pernas do meu ombro e assim eu fiz o parto daquela criança. Achei que a criança iria cair no chão porque estava muito escorregadio, chovendo e muito frio, mas deu tudo certo. A ambulância chegou, o bebê já tinha nascido e a gente obviamente transferiu mãe e bebê para o hospital e correu tudo bem.
Também já convenci paciente de sair do lado de fora da janela do oitavo andar de um prédio. Tive que usar de muita psicologia - por isso fiz pós-graduação em psicologia, porque lido com emergência que nem sempre são médicas, no sentido físico. São crises mentais, então eu posso ter o melhor conhecimento fisiológico, de farmacologia, mas se não tenho conhecimento de psicologia, não consigo tirar aquela pessoa daquela janela. Foi uma uma negociação tensa, até ele conseguir vir e sentar no sofá. Foi um alívio.
Os meus pacientes prediletos são os idosos, com certeza. Às vezes, eles nem têm uma emergência, mas se sentem sozinhos, querem conversar com alguém. Aí ligam e falam que estão com dor no peito e tal. Chego e vejo que não é isso. Consigo entender que, na verdade, o velhinho está sozinho. Ele quer uma atenção e um carinho. E é isso que vou dar.
A gente toma um chá, conversa, faço um sanduíche pra ele e fico com aquele idoso meia hora, quarenta minutos, uma hora, o tempo que for necessário para ele ter o que ele precisa. Então, não é tudo que faço que tem adrenalina. Às vezes, um abraço é tudo que a pessoa precisa.
"Todo mundo deveria saber um mínimo de primeiros socorros"
Nunca planejei ter uma empresa que ensina primeiros socorros, mas quando comecei a trabalhar como paramédica, vi como as pessoas não sabem ajudar. Geralmente entram em pânico e o pânico é inimigo do raciocínio lógico.
O mínimo que toda pessoa deve saber em primeiros socorros é como lidar com sangramento, manobra de desengasgo e ressuscitação com uso de desfibrilador.
Aí me matriculei em cinco, seis cursos. Passei meses fazendo uma pesquisa de mercado e entendi que a qualidade dos cursos de primeiros socorros era terrível. Não ensinavam direito, era muito aluno para pouco equipamento, o professor que ensinava não era médico ou paramédico, alguém que nunca usou um desfibrilador, nunca salvou a vida de ninguém.
Achei um absurdo e resolvi ensinar corretamente. Tive que obter licença, então voltei para a sala de aula pra poder ser professora. Minha empresa se chama Yay First Aid. Ensinamos em português e, também, em inglês. Sou a única empresa que tem autorização para ensinar em português e emitir certificado em inglês. Já atendemos mais de 500 pessoas, que já estão salvando vidas.
Trabalho em média 40 horas semanais, mas não tenho horário certo. A cada semana trabalho em horário diferente. A minha rota é cinquenta por cento noturna. Então, tem dias que começo às seis da manhã e tem dia que eu começo às seis horas da tarde.
Folgo mais dias do que as pessoas que têm um trabalho comum - às vezes quatro dias seguidos, cinco dias, sete dias seguidos. Nessas ocasiões, ensino primeiros socorros, dou entrevistas, estou sempre fazendo alguma coisa. E tem dia de folga que não faço nada, fico deitada vendo televisão.
Gosto de sair com meus amigos, de dançar. Adoro cantar, apesar de não cantar tão bem. Gosto de me divertir. Tenho amigos maravilhosos, porque eu moro aqui sozinha desde os 20 anos de idade, então, meus amigos aqui são tipo minha família.
Nas redes sociais, minha função principal é ajudar o próximo. Até faço algumas parcerias que rendem dinheiro, mas só quando as empresas e produtos me representam. Foram as redes sociais que me permitiram cada vez mais alcançar o maior número de pessoas.
Sou uma pessoa com muitos lados: paramédica, empresária, influencer. E eu consigo unir todos eles como se fosse uma coisa só. Não me imagino em nenhuma outra função, pois sou muito realizada profissionalmente. Faço tudo que amo." Priscila Currie, 40 anos, é paramédica e mora em Londres há cerca de 20 anos.
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