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'Casei com chefe de boca, trafiquei e fui presa, mas mudei minha história'

Ariane Aparecida: profissionalização depois de dois anos presa - Arquivo pessoal
Ariane Aparecida: profissionalização depois de dois anos presa Imagem: Arquivo pessoal

Ariane Aparecida, em depoimento a Ed Rodrigues

Colaboração para Universa, em Recife

08/10/2022 04h00

"Tenho 27 anos, sou mãe de três filhos e moro no extremo leste de São Paulo, na Cidade Tiradentes. A história que vou contar começa no ano de 2009, quando eu tinha apenas 13 anos e morava em Guaianases, em uma comunidade muito 'agitada'.

Lá tinha de tudo: álcool, drogas, baladas, homens mais velhos se aproveitavando da inocência de muitas meninas novas. Eu era uma delas aquela época. Morava com minha mãe e três irmãos. Ela nos criava sozinha e trabalhava muito para isso.

Um dia, conheci um homem bonito, charmoso e mais velho do que eu. Na minha cabeça, o mais importante era que ele era gerente da boca. Foi aí que tudo desandou. Acabei me envolvendo com ele, me apaixonei loucamente. Foi meu pior erro.

Logo engravidei do meu primeiro filho. Não demorou muito, meu então parceiro me iniciou no crime. Como ele era gerente da boca, as drogas, armas, ficavam na minha casa. Tínhamos um cofre atrás do guarda-roupa. Eu com duas crianças pequenas me vi obrigada a trabalhar. Foi a pior fase na minha vida porque, além de tudo, ele começou a ficar violento. Veio a tortura física, psicológica, abuso sexual e muito mais.

Ele me batia diariamente, eram agressões terríveis. Chegou ao ponto de colocar uma arma na minha cabeça. Com muitas dores e o psicológico abalado, comecei a usar drogas e beber. Ele me traía, e eu tinha que ficar quieta porque, se não, ele me batia. Aturei esse terror por cinco anos, tinha muito medo. Até o dia que consegui tomar uma atitude.

Já não aguentando mais aquela vida, fui embora. Mas o envolvimento com as drogas e o álcool me prenderam naquele mundo. Comecei a traficar. Conheci outro parceiro, que me ensinou a abordar as vítimas para fugir com o carro delas.

Em uma dessas presepadas, fui presa em 2016. Passei por muita opressão, humilhação, desprezo e abandono. Fiquei presa por quase dois anos.

Não via meus filhos nem minha mãe. Foi a pior coisa desse mundo. Mas saí de lá mais forte, no início de 2018, e com a certeza de que não iria voltar.

O jogo virou

Quando saí, a sociedade me olhou com outros olhos. Um olhar de crítica, julgamento, desprezo. Mas minha família me aceitou. Só pediu para que eu nunca mais voltasse para a prisão.

Nesse tempo, tomei muito não na cara indo diariamente atrás de serviço. E quando eu falava que era egressa, eles me dispensavam na hora. Era horrível essa sensação de desprezo. Até que, conversando com uma amiga, Karina, que também era egressa como eu, soube da existência do Instituto Recomeçar, que ajuda pessoas que saíram do sistema prisional.

Ariane Aparecida - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Sonho de trabalhar na cozinha começou a ser realizado com ajuda de programa de capacitação de egressos
Imagem: Arquivo pessoal

"O trabalho muda a pessoa"

Estava desconfiada, mas liguei, marquei meu atendimento e fui até o local do programa. Lá, fui me adaptando às dinâmicas e comecei meu desenvolvimento pessoal, profissional, educacional. Tive a certeza de que estava no lugar certo quando, em uma de nossas reuniões, um rapaz educado falou: 'Nós somos iguais a você. Todos passamos pelo sistema prisional'.

Naquela hora, entendi que seria lá que se iniciaria um novo ciclo da minha vida. Porque o trabalho muda a pessoa. O programa te capacita, te dá segurança. Comecei passando por psicólogo, aprendendo como me posicionar em uma entrevista. Fiz vários cursos: quatro de tranças, controladora de acesso e portaria, designer e, depois, o mais importante de todos: de ajudante de cozinha.

Meu sonho sempre foi trabalhar em uma cozinha. Enfim, sonho realizado.

Comecei a cursar gastronomia no Mercado da Lapa, em São Paulo. A Recomeçar fornecia a passagem sem custo nenhum para mim. Foram 12 dias de curso intenso, com duas horas de viagem e pegando ônibus lotados. Todo esse tempo estudando até altas horas para aprender cada vez mais. Me formei em ajudante de cozinha e gastronomia pelo Instituto Paula Souza e, há pouco tempo, arrumei meu primeiro emprego na área.

Hoje eu posso dizer para me formei e, por meio disso e de muita luta, da minha persistência, ganhei um estágio na renomada confeitaria da chef Marilia Zylbersztajn, formada na importante escola Le Cordon Bleu. Marilia me deu essa oportunidade de crescer cada dia mais.

Ganhei uma bolsa de um ano de gastronomia francesa, fruto de muitos estudos até altas horas. Futuramente, serei uma cozinheira. Minha meta agora e ser uma chef.

Quero mostrar à sociedade que nós podemos mudar, sim. Erramos, pagamos, mas sempre tem uma chance de recomeçar. Hoje eu digo que eu sou apta e qualificada para se reintegrar ao mercado de trabalho e voltar ao convívio social.

Talvez eu seja uma em um milhão. Mas vamos mudar isso, mostrar para a sociedade que precisamos apenas de uma oportunidade, não de julgamentos ou críticas.

Somos capazes de mudar a estatística da reincidência criminal. Hoje eu não me sinto mais como uma egressa, pois eu mudei minha história. Quero ser um exemplo de vida e superação para os jovens da atualidade. Para dizer para àquele garoto ou àquela garota, movidos pelaemoção, na ilusão de dinheiro fácil, fama banal, que não vale a pena. Vamos mudar o mundo e as pessoas. Essa foi a maior receita que eu aprendi."

Ariane Aparecida, 27, mora em São Paulo e é estudante de gastronomia