Filho de Solimões leva sertanejo LGBT ao Grammy: o que canta o 'queernejo'?
"Acho que você leu errado." Essa foi a frase que o cantor Gabeu, 24, disse ao seu namorado quando foi acordado, na manhã do dia 20 de setembro, com a notícia que "Agropoc" foi indicado ao Grammy na categoria "melhor álbum de música sertaneja", ao lado de uma das duplas mais tradicionais do gênero, Chitãozinho e Xororó. Na sequência, o cantor recebeu dezenas de notificações no celular parabenizando-o por estar em um dos principais prêmios da música na América Latina. Era real. "Fiquei muito em choque", disse ele que, oficialmente, tem três anos de carreira.
O álbum havia sido enviado para avaliação da premiação meses atrás. "Quando a distribuidora do disco disse que enviaria, eu concordei, mas sem pretensão alguma", lembra.
Depois do primeiro momento de surpresa com a indicação, Gabeu conseguiu comemorar e entender o significado do prêmio para um movimento que, com outros nomes, lançou em 2020 e, agora, ganha grande projeção: o "queernejo", que reúne músicos e artistas LGBTQIA+. Seu álbum, inclusive, traz participações de outros nomes da cena, como Reddy Allor e Gali Galó, com quem Universa também conversou para entender mais sobre o movimento.
Queer é um termo do inglês que se refere às diferentes expressões sexuais e de gênero fora do âmbito da heterossexualidade.
"Essa nomeação é muito significativa para um artista como eu. Até então, as únicas pessoas LGBTs que entraram na nessa premiação e nesta categoria foram eu e a Luana Prado. Nesses três anos de carreira, são altos e baixos. A indicação ao Grammy é a confirmação de que sim, estou."
Sertanejo de família
Filho de Solimões, da dupla sertaneja Rionegro & Solimões, Gabeu cresceu em um ambiente em que a música sertaneja era muito presente. "Muito por conta da carreira do meu pai como músico, mas também pelas referências que ele sempre escutou dentro de casa, que sempre consumiu como fã. Escutei muito, na minha infância, músicos como Milionário e José Rico, Tião Carreiro, que acabam sendo uma referência para mim também", diz
Na pré-adolescência, Gabeu conta que se afastou do gênero. "Justamente por não me identificar com as figuras heteronormativas que estavam nos palcos nem com as narrativas, com o visual, com nada", afirma.
"Você vai curtir agora o som que vem do interior"
Nascido e criado em Franca, interior de São Paulo, Gabeu mostra nas letras de Agronejo sua vivência atravessada pela identidade de gênero, orientação sexual e vivência agrária. "Você vai curtir agora o som que vem do interior", diz, na primeira faixa do disco.
Além das letras, o queernejo traz inovações estéticas ao aproximar o pop do sertanejo. "Criamos algo ousado."
"Esteticamente a gente bebe muito dessa cultura pop. É um sertanejo com mais brilho, com mais apelo estético, com uma música mais tradicional. Acho que, talvez, seja um diferencial", diz.
"O queernejo tem muito para oferecer assim por conta dessas misturas ousadas. É um movimento muito novo, muito aberto. Estamos nos permitindo testar e experimentar."
Drag sertaneja começou fazendo dupla com irmão
Gabeu conta que, na fase de afastamento do sertanejo, migrou para o universo. E essa é uma trajetória compartilhada entre os nomes da cena LGBT dentro do sertanejo: ficar em um "não lugar" entre um ritmo e outro. É o que conta a cantora drag queen, 24, que faz participação em uma faixa do disco de Gabeu indicado ao Grammy.
Guilherme Bernardes, que perfoma Reddy Allor, começou na música aos 12 anos em uma dupla de irmãos, um modelo mais tradicional dentro do sertanejo.
"Era muito novinho. No processo, vi muito olhar torto e preconceito disfarçado de piada, coisas que toda 'criança viada' passa. Mas como estava a trabalho, não comprava briga porque tinha que respeitar os contratantes. E a forma de respeitar essas pessoas era me contendo, me diminuindo", conta. "Me sentia muito preso."
Aos 18 anos e ao começar a descobrir sua sexualidade, Guilherme foi buscar novas referências e conheceu a arte drag.
Como drag queen, Reddy Allor conta que se "forçou" a fazer pop. "Foi automático. Mas, na hora de compor, de escrever, de falar, de cantar sobre mim, ficava travada. Não me conectava com aquilo. E foi quando eu tive um estalo: 'caramba, eu amo sertanejo. Sertanejo faz parte da minha essência'. E passei a construir minha carreira musical em cima do gênero."
O maior retorno para Reddy foi quando a cantora Marília Mendonça compartilhou seu trabalho no Twitter. "Ela sempre foi a minha maior inspiração dentro do sertanejo porque quando vi uma figura feminina, com tanta potência dentro daquele cenário, pude me inspirar e ter força. Ela ter me dado esse aval foi libertador."
Aliar esses dois mundos trouxe retornos positivos. "As pessoas chegam e falam 'consegui me conectar com a minha família por causa da sua música, porque os meus pais só ouvem sertanejo e você é a única pessoa LGBT que eu consigo mostrar para eles' e eu vivi muito isso."
"Nem vem de pega-pega, se esconde-esconde, não perco o meu tempo com esse come e some. Se tu é fora do meio te boto pra escanteio: vai ver que teu defeito é ser muito homem" Gabeu em "Esconde-Esconde"
Fivela Festival: 1º festival de 'queernejo' do Brasil
O termo "queernejo" nasceu em 2020 e foi criado por outro nome do gênero, Gali Galó.
Em 2019, Gali começou a se entender como não binário, que não se identifica com o gênero feminino nem com o masculino. Se dedicava na época ao indie rock, mas passou a pensar sobre suas raízes na música. Foi quando conheceu a música de Gabeu. "Me mandaram a música 'Amor Rural' e descobri que era aquilo que eu estava buscando. Mandei uma mensagem para ele e uma música minha. Nos conhecemos naquele mesmo ano."
Juntos, Gali e Gabeu montaram o Fivela Festival, o primeiro de "queernejo" do Brasil. Foi a primeira vez que a palavra foi usada. "Até procurei no Google, não existia nenhum registro dessa palavra até então", lembra.
"O termo veio porque, naquela época, o Gabeu referia-se ao trabalho dele como 'pocnejo', um termo mais ligado ao universo dos homens gays, que eu não me identificava. Mas queria fazer parte disso. Então propus que a gente utilizasse esse termo, para incluir outras vivências LGBT.
O evento foi online por causa da pandemia, e no lineup estavam artistas como ele, Gabeu, Reddy Allor, Alice Marcone e outros nomes.
O Fivela Festival virou um selo, que hoje gerencia a carreira de Gabeu e Gali Galó.
Além da questão de gênero, outra grande diferença entre o movimento e o sertanejo tradicional é o dinheiro que os cantores ligados ao mainstream têm, inclusive, com nichos financiados pelo agronegócio. O dinheiro para produção dos artistas do "queernejo" ainda é uma dificuldade.
"Isso é bizarro porque todo mundo quer tirar uma casquinha do 'pink money', mas ninguém quer de fato investir. E acho que isso tem a ver tanto pela homofobia, transfobia quanto pelo conservadorismo de achar que o que fazemos não é sertanejo."
No próximo ano, Gali conta que os artistas pensam em reeditar o famoso show Amigos, que em 1995 juntou as duplas sertanejas Chitãozinho & Xororó, Zezé di Camargo & Luciano e Leandro & Leonardo. Na versão LGBT, o show já tem um nome: Amigues.
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