Uma história não saiu da minha cabeça enquanto eu via o filme "Uma Garota de Muita Sorte" lançado neste mês na Netflix. Quando era adolescente, eu bebi além do que meu corpo aguentava, dormi em uma festa e acordei com um colega da escola —que até então eu considerava um amigo— com a mão dentro da minha blusa, nos meus seios. Por sorte, acordei na hora, rapidamente tirei a mão dele dali e sai de perto. Nos dias que se passaram, minimizei a história na minha cabeça, inclusive em uma conversa com o próprio garoto que me parou na escadaria do colégio naquela semana numa tentativa —bem fraca— de consertar as coisas. Isso aconteceu há mais de 20 anos, mas eu posso dizer com certeza que não ouvi a palavra "desculpa" da boca dele.
Se você lendo esse texto e também é mulher, as chances de ter uma história de assédio ou abuso são grandes. O filme em questão, que está no ranking dos mais vistos da plataforma de streaming, conta o drama de Ani (Mila Kunis), uma mulher que convive com um trauma: na adolescência, foi abusada por três colegas e, na sequência, foi vítima de um tiroteio em massa na escola.
Em várias cenas do filme, Ani (Mila Kunis) dá respostas, digamos, socialmente esperadas para a vida que construiu em sua tentativa de superar o que viveu: a de uma mulher bonita, magra, bem-sucedida na carreira e prestes a se casar com um homem rico. Mas nós, a audiência, ouvimos o que está na cabeça dela: com uma voz ácida, quase cínica, ela deixa claro que o que ela sente na maioria das vezes é diferente do que expõe.
Para se defender, Ani criou uma nova persona —o mais distante possível da sua versão adolescente, a marcada Tifanny, uma menina de seios fartos e inteligente que ganhou bolsa de estudos na escola de prestígio e tinha dificuldade de se enturmar.
A vida quase perfeita de Ani começa a desmoronar logo no início do filme, quando vemos que seu trauma reaparece em diversas cenas banais do cotidiano. Ao escolher as facas de seu casamento, ela vê sangue pingando. Quando vai transar com o noivo, não consegue fazer sexo sem uma dose de violência.
A grande virada acontece quando um documentarista se aproxima dela tentando convencê-la a contar seu lado da história trágica que viveu. Até então, só o tiroteio é de conhecimento público e com uma versão questionável: Ani teria sobrevivido graças a uma ligação próxima com os atiradores. Segundo a versão contada pelos ex-colegas de escola, ela sabia o que ia acontecer. E, assim, foi parcialmente culpada pelo crime que matou vários colegas de classe e paralisou um deles, Dean, que se tornou político e ativista antiarmas.
O problema é que Dean é um de seus estupradores.
O filme é baseado num romance de mesmo nome lançado no Brasil pela Rocco em 2015. E sua autora, Jessica Knoll, também tem sua história de violência para engrossar as estatísticas: sofreu um estupro coletivo na escola de elite em que estudava, tal qual a personagem que criou.
Ela mesma, no entanto, só teve coragem de encarar o que viveu em 2016, um ano depois de o livro ser lançado, em uma carta aberta publicada na newsletter Lenny Letter, coordenada pela atriz e autora Lena Dunham. No texto, a autora afirma: "A primeira pessoa a me dizer que fui estuprada foi um terapeuta, sete anos após o fato. A segunda foi minha agente literária, cinco anos depois, só que ela não estava falando de mim. Ela estava falando sobre Ani, a protagonista do meu romance, 'Uma Garota de Muita Sorte', que é uma obra de ficção. O que guardei para mim, até hoje, é que sua inspiração não é".
Jessica decidiu tornar pública sua história após o lançamento e o sucesso do livro —principalmente ao receber relatos de mulheres que tinham vivido experiências similares. "Eu sofria ao ver os olhares dessas mulheres quando eu dizia que havia inventado essa história."
Ao longo do texto, Jessica conta que, tal qual a personagem que criou, acreditava que "viver bem seria a melhor vingança", mas, como Ani, o passado a atormentava. "Descobri, eventualmente, que aparentar viver bem não é a mesma coisa que realmente viver bem. A cura vem quando eu apagar a vergonha do que vivi."
Após vir à tona com sua história, Jessica resumiu o sentimento de muitas mulheres. "Eu não estou bem. Não está tudo bem. Mas finalmente esta é a verdade e falar disso é um começo."
Defesa, ataque, vingança
Não quero comparar minha experiência contada no início deste texto com a vivida por Jessica ou por Ani —sinto que tive sorte e consegui evitar o pior. Mas, dia destes, ouvi de uma amiga que sofreu um estupro coletivo em uma situação bem parecida à de Jessica —bêbada, numa festa entre amigos— como a ficha demora um pouco a cair e como ela se preocupou apenas em ser forte e seguir em frente.
Próximo à virada dos anos 2000, quando aconteceu tanto minha história quanto a da minha amiga, me senti orgulhosa de mim mesma por eu ter me defendido, não desculpado o tal garoto e, por fim, me afastado dele: "Fulano é um babaca", eu dizia para as minhas amigas, sem dar mais explicações. Mas faltou uma coisa: denunciar.
Li o livro de Jessica, que inspirou o filme recém-lançado, em 2016, ainda em inglês —na época, Jessica era editora da revista "Cosmo USA" e eu, da "Cosmo Brasil" e, por isso, uma versão pré lançamento caiu em minhas mãos. Naquela época, começaram a surgir reportagens sobre estupros nos campi de universidades americanas, sempre com personagens que não queriam dar o nome real ou mostrar o rosto. Até que no ano seguinte, em 2017, algo que transformaria a vida das mulheres mundo afora veio à tona: o movimento Me Too.
É emblemático pensar sobre o caminho do feminismo nas últimas décadas. Se antes a gente ouvia "cuidado, proteja-se", hoje as novas gerações já escutam "aconteceu comigo também e a culpa não é sua".
Um breve spoiler: na sequência final do filme, diversas mulheres, impulsionadas pela coragem de Ani em revelar o que aconteceu com ela, tal qual o movimento MeToo, criam coragem para falar de seus traumas e abusos. É uma cena tocante, emocionante, real, doída. Cortada por uma de mesma intensidade de choque de realidade: uma mulher que interpela Ani na rua para dizer que ela está apenas buscando "15 minutos de fama". E dói ainda mais ver que ela é desacreditada por outra mulher, outro fenômeno comum na sociedade machista.
Trabalhando com jornalismo feminino, noticio semanalmente mulheres que têm coragem de denunciar seus agressores e abusadores e, por mais triste que seja saber o volume desses casos, isso nos aproxima e nos fortalece. Faz com que estejamos, de alguma forma, unidas na cobrança para que esses criminosos cumpram pena pelo que fizeram.
Essa coragem que cada vez mais mulheres têm tido nos faz vislumbrar um caminho em que a Justiça cumpra o seu papel e a impunidade não prevaleça.
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