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'Perdi meu bebê e tive que passar 27 dias com ele sem vida dentro de mim'

Anahi Martinho - Arquivo Pessoal
Anahi Martinho Imagem: Arquivo Pessoal

Anahi Martinho

Colaboração para Universa, em São Paulo

13/10/2022 04h00

"Outubro é o mês internacional do apoio ao luto gestacional e neonatal. É também o mês em que estava prevista a chegada do meu primeiro filho.

Descobri que estava grávida numa quarta-feira de cinzas, de um namorado que eu conhecia há apenas três meses. Ficamos muito assustados quando vimos o teste positivo. Não estava nos planos. Mas estávamos apaixonados, decidimos ficar juntos e levar a gestação adiante.

Comecei a fazer o pré-natal e fui ficando cada dia mais empolgada. Meus pais me apoiaram muito, o que me deixou tranquila e segura da decisão. Já o pai do bebê foi ficando cada vez mais ausente, desinteressado, não comparecia nos exames e consultas. Isso me abalou, mas eu estava confiante em ter meu filho, independente do futuro daquela relação. Já estava cheia de sonhos.

Fiz todo o pré-natal pelo SUS. Fui muito bem atendida. Uma agente de saúde me visitava em casa a cada 15 dias para acompanhar a gestação, saber se eu estava fazendo os exames. Eu circulava orgulhosa pela UBS com minha caderneta da gestante nos braços. Me sentia muito importante. Produzir um novo ser humano é uma honra.

Logo no primeiro ultrassom, recebi uma notícia horrível. O embrião ainda não tinha sinais vitais e o tamanho era incompatível com a idade gestacional. Algo estava errado. Me solicitaram mais exames.

A cada exame, as notícias pioravam. Foram três semanas de incertezas e desespero, até que fui diagnosticada com um aborto retido. Eu nem sabia que isso existia. Significa que o embrião morreu ou parou de se desenvolver, mas continua dentro do útero.

A norma técnica de Atenção Humanizada ao Abortamento, publicada pelo Ministério da Saúde em 2005, prevê que o aborto retido seja tratado com misoprostol (um medicamento abortivo) ou aspiração manual intra-uterina (AMIU).

"Em geral, no abortamento retido, o colo uterino encontra-se fechado e não há perda sangüínea. O exame de ultrassom revela ausência de sinais de vitalidade. Pode ser tratado utilizando-se o misoprostol ou, quando o tamanho uterino corresponder à gestação com menos de 12 semanas, pode-se empregar a técnica de AMIU", diz o documento do Ministério da Saúde.

"Foi a pior dor que já senti na vida"

Quando recebi o diagnóstico, a médica me mandou ir para casa e esperar até 20 dias para o embrião sair sozinho. Se demorasse mais que isso, eu teria que passar por uma curetagem. Foi essa a orientação que recebi. Ela ainda disse: "Espere pelo pior".

Esperei sete dias com o bebê sem vida dentro de mim. Os sintomas da gravidez persistiam: fome, enjoos, dor nos seios. Continuava grávida, mas de um bebê morto. No sétimo dia, não aguentei mais essa tortura e fui à Santa Casa de Misericórdia de São Paulo, pedir para receber o tratamento previsto. Pedi ao meu parceiro que me acompanhasse e ele falou: "Vai fazer o quê lá? Pagar mico?"

Como eu não tinha sangramento nem dor, me mandaram embora. Cheguei a implorar para a médica que acabasse com meu sofrimento. Mas num país que proíbe o aborto, mesmo com três laudos comprovando que meu bebê já estava sem vida, esbarrei na burocracia, na lei e na moral. Me fizeram repetir o ultrassom mais duas vezes no mesmo dia, só para ouvir o mesmo diagnóstico: "O seu bebê não está se desenvolvendo". "Eu sei", respondi. Me mandaram ir para casa e esperar sair sozinho. Esperei mais 20 dias.

Foram as piores semanas da minha vida. Houve um momento em que entrei em negação. Tinha certeza que ia acontecer um milagre, que os médicos estariam todos errados, que o coração do meu bebê ia bater a qualquer momento, que ele só estava se desenvolvendo mais devagarinho que os outros, no tempinho dele. Sou bem religiosa, sigo a fé umbandista. Passei a rezar e acender velas todos os dias pedindo por um milagre.

Em um domingo, meu corpo começou a expulsar o embrião. Passei a sentir as contrações, que foram evoluindo e ficando menos espaçadas. Acho que foram parecidas com as contrações de um parto. O nível de dor e o tempo entre as contrações foi escalonando, até que começou a sair um volume muito grande de sangue e coágulos grossos. Foi a pior dor que já senti na vida. Gritava e chorava muito.

Meu companheiro não me deu apoio nenhum. Colocou fones de ouvido e ficou na sala para não ouvir meus gritos enquanto eu perdia nosso filho no banheiro. Depois, decidiu ir passear de bicicleta e voltou mais de uma hora depois, trazendo uma coxinha para eu jantar. Não consegui comer.

Liguei para a minha mãe, que atravessou a cidade em 40 minutos e veio me buscar. Quando chegamos no hospital, foram cenas de um filme de terror. Era muito sangue na maca, no chão, nas minhas pernas, nos meus pés, nas luvas, braços e jalecos dos médicos. Passei umas seis horas sangrando muito, sentindo a dor mais intensa da minha vida. Minha mãe viu aquele sangue todo e desmaiou. Um médico falou: "Se for para a senhora passar mal, não vai poder ficar aqui dentro".

O pai do bebê ficou o tempo todo no estacionamento do hospital. Eu perguntava por ele, pedia para chamá-lo. Lá pela meia-noite, me avisaram que ele tinha ido embora. Disse que precisava dormir para trabalhar descansado na segunda-feira.

Minha mãe passou a noite comigo, sentada em uma cadeira de plástico e debruçada na maca. No dia seguinte, fui levada ao centro cirúrgico para ser submetida a uma curetagem. Meu corpo não tinha conseguido expulsar tudo. Ficaram restos, que precisariam ser removidos pois havia risco de infecção. A curetagem é um procedimento considerado obsoleto e fortemente desaconselhado pela Organização Mundial de Saúde (OMS) desde 2012.

"Meu companheiro passou a noite em um samba"

Tive muito medo da cirurgia. Tomei anestesia raquidiana, a mesma que fazem em partos cesárea. Teve uma hora que senti a cureta dentro de mim. A cureta é tipo uma colher de cabo longo que eles enfiam dentro do útero e raspam o que sobrou de um aborto incompleto.

Enquanto passava a noite no hospital, meu companheiro foi a um samba - Arquivo Pessoal - Arquivo Pessoal
Enquanto passava a noite no hospital, meu companheiro foi a um samba
Imagem: Arquivo Pessoal

Acordei na maternidade. Tinha três mães com seus bebezinhos nascidos na mesma noite em que perdi o meu.

Logo que acordei, uma médica me ofereceu um implante subdérmico de etonorgestrel, o Implanon, e me entregou um papel para assinar. O Implanon é um anticoncepcional hormonal de longa duração, que só pode ser removido em ambiente hospitalar.

Fiquei assustada, jamais usaria esse implante. Ninguém me perguntou se eu queria ou não evitar uma nova gravidez. Acho que devem ter pensado que eu provoquei o aborto. Esse tipo de situação só poderia acontecer em um país onde as mulheres não têm a garantia de seus direitos reprodutivos.

Ainda passei mais uma noite internada. Meu companheiro não me visitou nenhuma vez, não me ligou, não deu apoio nenhum. Em vez disso, foi para um samba e postou até foto. Aquilo me machucou muito, parecia que ele estava comemorando. Passei a noite chorando no hospital. Uma senhora de 69 anos que dividia o quarto comigo, se recuperando de uma fratura no fêmur, me consolou.

Até hoje não entendi porque ele fez isso. Por um tempo, quis acreditar que ele surtou, que não soube lidar com a situação. Ele pediu para voltar e eu tentei perdoar. Mas depois me afastei e nunca mais tive notícias dele.

Teve gente que falou para mim: "Foi um livramento, imagina que pai seu filho teria?". As pessoas não dizem por mal, mas falas como essa doem muito. Por pior que fosse o pai, o contexto todo, nunca vou considerar que perder meu bebê foi um livramento. Eu desejava muito aquele filho e estava disposta a criá-lo sozinha, como fazem milhões de mães brasileiras."

Anahi Martinho, 33 anos, é jornalista e mora em São Paulo.