Calor, desmaio e 'glória a Deus': um dia com eleitoras de Lula e Bolsonaro
Eram 10h30 de quinta-feira (20) quando a sensação térmica de São Gonçalo, no estado do Rio de Janeiro, já batia 30 graus. Mesmo assim, centenas de pessoas ocupavam a praça Zé Garoto, na região metropolitana, à espera do ex-presidente e candidato ao Palácio Luiz Inácio Lula da Silva (PT). Ele fez ali uma carreata acompanhado de outros políticos da esquerda, como o deputado federal Marcelo Freixo (PSB). Alguns apoiadores passaram mal e desmaiaram devido ao forte calor.
"Sou mulher e o discurso do Lula me contempla, porque hoje sei que o governo Bolsonaro vetou toda verba do combate à violência de gênero, e precisamos de um governo que pense no povo como um todo", justificou a pedagoga Yalase Bianca Silva, 46 anos, ao chegar no local.
A 40 quilômetros dali, mulheres usando verde e amarelo, salto e maquiagem se reuniram na Assembleia de Deus Vitória em Cristo, na Penha, bairro da zona norte da capital fluminense, com capacidade para seis mil pessoas e ar-condicionado estalando para apoiar a primeira-dama Michelle Bolsonaro.
Ela era uma das presentes no culto especial de aniversário de Elizete Malafaia, esposa do pastor Silas Malafaia, ferrenho apoiador do presidente Jair Bolsonaro (PL). O local estava lotado de mulheres. "O pastor não queria homem aqui hoje", comentou uma fiel.
Mesmo assim, podiam-se ver alguns poucos homens tomando o lugar de senhoras que assistiam ao culto em pé.
"Tá vendo como aqui também tem desigualdade? Um monte de senhora em pé e dois rapazes ali sentados. Nem era para estarem aqui", cochichou uma outra religiosa à amiga.
Universa passou o dia acompanhando parte da agenda de Lula e Michelle no Rio de Janeiro para mostrar o que pensam as eleitoras de cada lado.
'Feminicídio não tem classe social'
No lado da esquerda, eleitoras apontaram que suas opositoras se guiam por fake news e reproduzem o machismo estrutural.
"Acho que elas são bonecas de bibelô montadas por um mundo machista, enquanto nós, da esquerda, somos guerreiras que trabalham e põem comida na mesa, e conversam com homem de igual para igual. Acho a direita muito preconceituosa", opina a baixista Kely Vitoria Petris, vestindo jeans e blusa preta. "Se fosse da direita ia estar aqui de salto", comenta.
A cineasta e presidente estadual do coletivo Afro Verdes RJ, Rosa Miranda, 41 anos, concorda que de uma maneira geral as mulheres da direita reproduzem o machismo posto "num país extremamente conservador", mas enxerga diálogo nas congruências.
"A gente foi criada para ser racista, machista, LGBTfóbica, mas podemos trazer essas pessoas nas pautas que nos são comuns. Todas nós acreditamos na família e que as pessoas devem ser respeitadas na sua integridade. Quando a gente vê o que está em torno da gente nos aproxima, a gente consegue dialogar com essa galera. Até porque, para governar, vai ter que estar com ela também", analisa.
Em busca de um diálogo harmônico, a produtora cultural Juliane Dias, 42 anos, diz trazer dados e pesquisas que desmentem fake news e desinformação.
"O feminicídio está crescendo e as estatísticas apontam, mas o cara [Bolsonaro] fala que diminuiu. E estamos falando de algo que não tem classe social. A rica e a pobre são agredidas e assediadas, então é na violência que a gente se encontra", observa.
'Existem discussões maiores que a do aborto'
A engenheira de produção Jennifer Dias, 38 anos, acredita que mulheres consideradas mais conservadoras poderiam eventualmente votar em um partido de esquerda.
"É possível ser conservadora e votar na esquerda, mas depende do seu nível de conservadorismo. Eu sou católica praticante e várias pessoas da minha igreja votam no Lula porque entendem que há discussões maiores que a do aborto, por exemplo", opina.
O aborto é o tema mais citado para marcar a diferença entre os lados. A também engenheira de produção Talita Moraes, 25 anos, até se revolta quando ouve a palavra.
"Parece que somos a favor do aborto e vamos arrancar sempre que possível o bebê da gente. Ser a favor do aborto é ser a favor de dar liberdade para a mulher escolher. Pior é o Bolsonaro que demonstra não respeitar as mulheres quando veta, por exemplo, projeto para distribuir absorventes nas escolas", diz.
Segundo o Datafolha, 51% das intenções de votos em Lula vêm das mulheres, ante os 42% de Bolsonaro.
Após o desfile em um carro aberto, Lula subiu em um trio elétrico para discursar aos presentes e prometeu, entre outras coisas, a igualdade salarial entre pessoas de distintos gêneros que exerçam a mesma função.
'Não olhe para o meu marido, olhe para mim'
Eram pouco mais de 21h quando Michelle Bolsonaro subiu ao púlpito do templo da Advec, igreja onde foi batizada. Com uma camisa onde se lia "Ore pelo Brasil", ela começou seu discurso dizendo que fez "muita birra ao Senhor" no início do mandato de Jair Bolsonaro, em 2018, porque não queria estar na presidência, e que teve depressão ao ponto de querer morrer. Mas entendeu que precisava trabalhar porque até então, segundo opinião dela, o país não teve uma primeira-dama atuante.
"Falei ao Senhor que eu iria fazer a diferença. Eu não queria ser uma primeira-dama de enfeite. E quando eu cheguei, eu vi que a gente não tinha nenhuma estrutura para poder trabalhar, até porque a gente não teve nenhuma primeira-dama atuante."
Michelle estava acompanhada de uma comitiva de parlamentares mulheres, como Celina Leão (PP), vice-governadora eleita do Distrito Federal, e a deputada federal eleita Sílvia Waiãpi (Republicanos).
Sob aplausos e gritos de "glória a Deus", disse em tom calmo e semblante cansado que pessoas estão "caindo no conto da serpente", que o país vive momento de guerra do bem contra o mal e que "é sobre o que Satanás quer fazer com a nossa nação". E pediu que os cristãos olhassem para seu exemplo.
"Não olhe para o meu marido, olhe para mim, que sou uma serva do senhor, que dobra os joelhos. Eu tenho entendimento do mundo espiritual, e ele é tão falho como eu e você, porque perfeito só Jesus."
Pediu ainda que a igreja orasse pelos jovens porque, nas suas palavras, "infelizmente são massas de manobra dentro das universidades".
"Conversem, expliquem para aqueles que ainda estão com alguma dúvida em relação ao momento espiritual que nós estamos passando. Está muito claro e é muito fácil escolher. É só você ver o que o outro lado prega. Os valores da nossa família, a nossa liberdade de expressão, a nossa liberdade religiosa estão sendo ameaçados."
Emocionada, a confeiteira Dayene Gomes, 33 anos, acredita que a atuação da primeira-dama na campanha do presidente tem sido determinante para as mulheres.
"O fato de a Michelle estar aqui é um sinal muito importante, até porque nunca vi primeira-dama tão presente no Brasil. Acho que o segundo governo do Bolsonaro será melhor para as mulheres, por seu envolvimento."
Ao lado de Dayane, sua filha mais velha, Beatriz Gomes Ferreira, 13 anos, se dizia doida para votar —só poderia a partir dos 16—, e que adora discutir política com as amigas da 8ª série do ensino fundamental.
"Gosto bastante do lado em que me encontro porque me sinto mais feliz e livre para falar o que quero. Muita gente não respeita a opinião no outro lado", ela descreve.
Para a adolescente, Bolsonaro respeita as mulheres "porque aprendi desde pequena que a vida de uma pessoa é muito importante, enquanto a esquerda quer matar crianças dentro do ventre". A mãe se emociona com a fala da filha, vestida com a camisa da Seleção Brasileira.
Além de ser contra o aborto, por princípios religiosos, a professora aposentada Cirlei Rodrigues, 68 anos, acredita que o país está "perdendo a razão" ao defender pautas como ideologia de gênero, expressão criada pela direita, legalização das drogas e relações homoafetivas. E que, com Bolsonaro, vê uma "luz no fim do túnel".
"Tô vendo muitas coisas erradas do outro lado como a ideologia de gênero, o casamento de mulher com mulher, homem com homem, o que não é certo dentro da palavra de Deus, mas o presidente fala que vai ter dias melhores e estou confiando nas promessas dele."
A terapeuta familiar Adriana Oliveira, 49 anos, endossa o discurso da amiga, e acrescenta ainda não concordar que homens e mulheres sejam iguais em tudo, "como a esquerda defende".
"Às vezes a mulher briga por um salário igual, mas na hora do muque não quer o suor. Mesmo porque a mulher não foi feita para algumas coisas que o homem faz, e não dá para competir."
A administradora Erica Isaias, 43 anos, também enxerga que "mulher é mulher", e defende que é preciso manter as leis existentes para acabar com esse tipo de embate. "Nossa sociedade precisa ter limites e regras."
Também atuante na área da administração, Camila Nascimento, 42 anos, concorda que é importante a briga pela equiparação salarial conforme Adriana defende, mas acredita que não se deve olhar somente para esse ponto. "A gente não tem que olhar o gênero, e sim a experiência, a competência."
Mãe de dois meninos, de 10 e 2 anos, o que a carioca gostaria de ver entrar na discussão tanto da esquerda quanto da direita é um olhar mais atento para as famílias.
"Eu sou mãe e defendo que se ampare mais quem tem filho, oferecendo, por exemplo, terapia emocional e aumentando a licença-maternidade de quatro meses para um ano —e essa luta eu não vejo nem na esquerda e nem na direita."
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