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'Não basta ser mulher': italianas temem perder direitos com nova premiê

Giorgia Meloni, nova primeira-ministra da Itália que é fã de Mussolini - Reprodução/Instagram @ giorgiameloni
Giorgia Meloni, nova primeira-ministra da Itália que é fã de Mussolini Imagem: Reprodução/Instagram @ giorgiameloni

Iugh Mattar

Colaboração para Universa, em Perugia, na Itália

22/10/2022 12h38

A Itália olhará para as mulheres? Muitos se fizeram essa pergunta sob tímidas comemorações pelo fato de que, finalmente, pela primeira vez na história, haverá alguém do gênero feminino no cargo mais importante do governo do país europeu. Mas Giorgia Meloni, 45, a nova primeira-ministra italiana que assumiu o posto neste sábado (22), além de nunca ter se declarado feminista, defende pautas da extrema-direita que vão de encontro à luta dos direitos das mulheres.

Para ativistas, Meloni dá sinais claros de que não tem interesse em atuar pelas políticas de gênero e nem de igualdade de oportunidades. Prova disso foi o slogan usado na sua campanha —"Eu sou Giorgia, sou uma mulher, sou uma mãe e sou cristã"— e seu desejo de boicotar o Ministério de Igualdade de Oportunidades e Família.

"Justamente porque teremos Giorgia Meloni como chefe do governo, seria apropriado começar a construir uma unidade de ação entre mulheres, unificando objetivos e conectando as lutas para obtê-los. Não só pela emancipação feminina, mas também pela sua libertação. Se não agora, quando?", afirma a Universa Maria Boroni, representante do coletivo Non Una Di Meno (Nenhuma a Menos) e também responsável pelas políticas de gênero do Partido Comunista italiano.

Entre os temores com a nomeação de Meloni está o fim do Ministério de Igualdade de Oportunidades e Família, criado com o segundo governo de Giuseppe Conte, em 2019, e considerado uma significativa conquista na luta pelos direitos das mulheres.

Giorgia Meloni em sessão de juramento para assumir como nova primeira-ministra da Itália - GUGLIELMO MANGIAPANE/REUTERS - GUGLIELMO MANGIAPANE/REUTERS
Giorgia Meloni em sessão de juramento para assumir como nova primeira-ministra da Itália
Imagem: GUGLIELMO MANGIAPANE/REUTERS

A última ministra da pasta, Elena Bonetti, do partido Itália Viva, afirmou em entrevista ao jornal "La Repubblica" que, se Meloni vier a desmontar o órgão, corre-se o risco de penalizar não apenas as mulheres, mas também a comunidade LGBTQIA+, visto que é precisamente desse órgão que passam todas as intervenções contra a discriminação de gênero. Na sexta-feira (21), Meloni já havia anunciado que esse o ministério se chamará Igualdade de Oportunidades, Natalidade e Família.

Foco na "família tradicional" e no catolicismo

Eugenia Roccella foi escolhida para assumir a pasta no novo governo. A expoente do Fratelli d'Italia foi porta-voz, em 2007, do Dia da Família, uma manifestação dedicada aos valores tradicionais da família promovido pelas associações católicas. Em 2013, criou a campanha Di Mamma Ce n'è Una Sola (Mãe Só Existe Uma), a primeira manifestação do país contra barrigas de aluguel.

O nome de Rocella mais a soma da palavra natalidade ao ministério é visto como uma provocação pelas feministas italianas, pois a nova ministra, durante a campanha eleitoral no mês de agosto, declarou em entrevista para o programa "In Onda", do canal La, que "o aborto não é um direito". A fala não é verdadeira, já que o país autoriza a interrupção de gravidez nos primeiros 90 dias de gestação desde 1978.

"Não basta ser mulher para promover políticas para mulheres"

Também em entrevista recente para o "La Repubblica", a líder da oposição no Senado, Simona Malpezzi, do Partido Democrático, afirmou que a Itália corre o risco de esquecer as mulheres. "A primeira mulher que vai liderar o governo quer desmantelar as políticas de gênero. Para nós, essas políticas deveriam ser fortalecidas. Essa é a diferença entre eles e nós. Não basta ser mulher para promover políticas para as mulheres", ela disse.

Muitas pessoas, seja na Itália ou no exterior, elogiaram o fato de que finalmente, pela primeira vez na história, haverá uma mulher no cargo mais importante do governo.

A ativista Maria Boroni declara que as pessoas "podem elogiar por ignorância ou por má fé" a conquista da Meloni como se fosse uma conquista feminista.

"Ser feminista é ter consciência de pertencer a um gênero que lhe dá uma visão do mundo voltada a eliminar todas as formas de opressão e violência, estabelecer a solidariedade na sociedade, cuidar de todos os seres vivos e da vida no planeta em todos os aspectos. Dessa forma, Meloni não é, no sentido do feminismo, uma mulher."

Giorgia Meloni é um "foguete político" desde adolescente

Nascida em Roma em 1977, Meloni começou a fazer política aos 15 anos, quando ingressou no movimento Frente Juvenil. Quatro anos depois, tornou-se chefe nacional da Ação Estudantil e, em 1998, ocupou o primeiro cargo na política italiana, tornando-se conselheira provincial de Roma pela Alleanza Nazionale. Aos 29, chegou ao posto de vice-presidenta da Câmara dos Deputados e, dois anos depois, em 2008, se tornou ministra da jJuventude. A partir de 2014, tornou-se presidenta do partido Fratelli d'Italia.

A sigla venceu as eleições italianas no último 25 de setembro com cerca de 44% dos votos. A coligação contava com os três principais partidos de direita: a Lega, capitaneado por Matteo Salvini, a Forza Italia, do ex-primeiro-ministro Silvio Berlusconi, envolvido em escândalos de corrupção e sexuais, e o Fratelli d'Italia presidido por Meloni, que subiu de 4% para 26% na aprovação nacional.

Dois desses partidos, inclusive, estão nas outras duas principais casas do país: Ignazio La Russa, fundador do Fratelli d'Italia, foi eleito presidente do Senado, enquanto a Câmara dos Deputados será comandada por Lorenzo Fontana, do Lega.

Aliados de nova premiê seguirão agenda conservadora

La Russa é conhecido por fazer elogios ao ditador Mussolini, e Fontana é um político conservador católico contra o aborto e que tem um histórico contra os direitos das mulheres. Enquanto ministro, ele propôs redução de impostos para famílias com crianças, o que, para ele, evitaria o aborto.

Quando Lorenzo foi o ministro da Família e das Pessoas com Deficiência, entre 2018 e 2019, representou, segundo o portal Tag24, a alma mais conservadora da Lega. Ele se declarou várias vezes contrário ao aborto, chamando-o de "a primeira causa de feminicídio no mundo".

É a primeira vez, desde a queda do ditador fascista Benito Mussolini, na Segunda Guerra Mundial, que o país tem um governo ultraconservador e com raízes no fascismo.

Previsão é de que acesso ao aborto será dificultado no país

Atualmente, as italianas podem comprar o medicamento necessário para a interrupção da gravidez na farmácia. Há, porém, um movimento para dificultar esse acesso, apoiado pelo presidente da Câmara dos Deputados. Essa deve virar uma batalha nas casas legislativas do país a partir de agora.

No último 13 de outubro, durante inauguração do novo parlamento, foram protocolados três projetos de lei que seguem essa linha. Um prevê que o reconhecimento do direito jurídico de uma pessoa ocorra já no momento da concepção, e não apenas após o nascimento —essa mesma linha é seguida por parlamentares brasileiros, que tentam introduzir a expressão "desde a concepção" na lei brasileira.

Se aprovado o projeto, a interrupção da gravidez passa a ser considerada um homicídio voluntário. Já a segunda proposta quer estabelecer o dia do nascituro, nome dado ao feto antes de nascer. A terceira proposta é do senador da Lega Massimiliano Romeo, que prevê a criação de um fundo para o apoio à maternidade, para evitar que as grávidas recorram à interrupção voluntária da gravidez.

Diante de cenário, ativistas temem perder direitos com o governo de extrema direita, conforme conclui o grupo Maria da Penha na Itália, representado por Daniela Castro e Taiane Ferreira. "A preocupação é pelo fato de que as modificações na lei do aborto sejam o início para reduzir ou questionar outros direitos e as lutas conquistadas pelas mulheres, permitindo assim a conservação de uma cultura e pensamento patriarcal."