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'Não dá para esperar bom senso dos colegas': lições da 1ª executiva trans

Danielle Torres lançou um livro para falar sobre sua trajetória como executiva e trans - Gabriela Cariri
Danielle Torres lançou um livro para falar sobre sua trajetória como executiva e trans Imagem: Gabriela Cariri

De Universa, em São Paulo

24/10/2022 04h00

Quem vê as conquistas de Danielle Torres, 39 anos, sócia da consultoria KPMG, pode pensar que para ela tudo foi mais fácil. Afinal, a executiva já ocupava um cargo de diretoria na empresa quando fez a sua transição de gênero. No entanto, mesmo com anos de experiência e potencial reconhecido, Danielle precisou enfrentar a desconfiança dos outros profissionais ao longo do processo.

"Me falaram que se eu conseguisse manter a minha vaga já seria extraordinário. A narrativa das pessoas era quase como se eu fosse fazer um favor para a empresa porque agora ela seria diversa, sabe? E as conversas que eu tinha com as lideranças não eram nada disso, muito pelo contrário", conta ela em entrevista a Universa. Quando falou para seus superiores sobre a sua decisão, diz, recebeu apoio desde o início.

Em seu livro "Sou Danielle: como me tornei a primeira executiva trans do Brasil" (Planeta), lançado em agosto, ela conta com detalhes como foi essa mudança em sua vida executiva e as várias experiências que viveu.

Quem enviou o e-mail com o aviso sobre a transição de gênero de Danielle foi o presidente da empresa, em assinatura conjunta com o vice-presidente. "Eles disseram que meu processo seria respeitado. Mas se essa mensagem não tivesse sido enviada pelos dois, e sim por um gerente de RH, por exemplo, eu não estaria aqui contando essa história", diz. Para ela, as pessoas se modelam pelos líderes, por isso foi tão importante a instrução e o direcionamento ter acontecido dessa forma.

"Falta diálogo com as pessoas. Muitas vezes, estamos discutindo imaturidades, problemas de terceiros e coisas que não têm nada a ver comigo. Por isso, essa conversa tem de vir da liderança", explica Danielle.

Não adianta nada o gerente de diversidade falar que precisamos abraçar as diferenças se o presidente pegar o microfone e disser que na empresa são todos iguais. Não faz sentido.

Mesmo com o reconhecimento sobre a necessidade de acolher com respeito pessoas transsexuais no mercado de trabalho, Danielle acredita que os funcionários precisam passar por um processo educativo. "Se a pessoa falar: 'Ah, mas eu não concordo, o mundo está difícil', temos de pontuar que isso sempre existiu. A diferença é que agora a pessoa trans trabalha ao seu lado. Não dá para esperar as pessoas aprenderem e a terem bom senso. Por isso a cartilha. E tem que ser de cima para baixo", diz Danielle.

A criação de regras e padrões, segundo a executiva, ajuda as pessoas a aprenderem a se comportar com respeito. "Não posso ficar esperando quatro anos alguém compreender que tem de usar os pronomes femininos, mesmo que não concorde. Mas na minha experiência, posso dizer que as pessoas aprendem", conta.

'Você deve tudo a ele'

Para muitos, quando transacionou foi quase como se Danielle estivesse roubando a identidade de outra pessoa. Saía o Torres, e o crachá ganhava outro nome e foto. Para ela, o impacto social disso é grande. "Tive que desenvolver uma habilidade, porque a transfobia é algo estrutural. Uma das maiores incoerências é as pessoas acharem que eu estou em meu cargo porque sou transexual. Qual a lógica de achar que a minoria da minoria seria privilegiada em uma posição de destaque?", diz Danielle.

A realidade das pessoas transexuais no mercado de trabalho não é fácil. De acordo com a TransEmpregos, especializada em encontrar posições no mercado para pessoas trans, 797 profissionais foram contratados em 2021 fazendo o uso da plataforma —um aumento de 11% em relação ao ano anterior. Apesar do aumento dentro dessa plataforma específica para o público, sabemos que as oportunidades ainda são poucas.

Danielle Torres lançou um livro para falar sobre sua trajetória como executiva e trans - Gabriela Cariri - Gabriela Cariri
Danielle Torres lançou um livro para falar sobre sua trajetória como executiva e trans
Imagem: Gabriela Cariri

Danielle avalia que entre os 20 e os 30 anos viveu uma década perdida. Apesar da grande evolução que teve em sua carreira, fez tudo isso precisando se dedicar a ser alguém que não era. "Todo o meu alicerce profissional foi nessa época, isso é inegável. Mas com 30 anos de idade eu estava com transtorno de pânico severo, à beira da depressão e mal conseguindo sair da minha casa", conta.

Como ela ocupava o cargo de diretora havia menos de um ano, enquanto muita gente pensava que a vida estava ganha, a realidade era outra. "Tinha uma construção para fazer ainda. Hoje sou muito mais sênior. Construí toda uma carreira como Danielle. O Torres estava no começo de uma carreira no alto executivo e, hoje, estou longe do fim, mas já me aproximei mais desses degraus", explica.

Para lidar com essa mudança, mesmo já tendo um cargo de liderança, Danielle precisou desenvolver um repertório contra a transfobia estrutural. "Tive que aprender a lidar com tudo isso em meio a uma exposição que era mais ou menos assim: 'Você só está aí por causa do Torres. Você deve tudo a ele'. Ouvi muitas vezes que sem ele eu não teria a menor chance", conta.

Para acabar com essa discussão de que Danielle devia tudo a Torres, como se ele fosse uma outra pessoa, ela decidiu que precisaria se tornar mais bem-sucedida do que ele. Além de se tornar uma executiva mais sênior do que o Torres jamais foi, Danielle fez MBA em Tecnologia para Negócios, Inteligência Artificial, Dados científicos e Big Data e em Gestão de Negócios, iniciou um Mestrado em Ciência e Análise de Dados no Georgia Institute of Technology (que vai concluir em 2024) e trabalhou no Department of Professional Practice (DPP) da KPMG em Nova York por um ano e meio.

"Tenho um currículo interessante, posso ficar horas falando dele. Mas 70% do que conquistei foi como Danielle. Trabalhar em Nova York, fazer um mestrado? Nada disso existia na época do Torres."