'Fui perseguida durante 6 anos: stalker mandava ameaça de estupro e morte'
Desde 2015, a atriz Livia Vilela convivia com um colega de trabalho que começou a persegui-la. Os primeiros contatos, passando por um admirador que assistia a todas as suas peças e cuja presença alguns amigos de Livia amenizavam ao classificar como paixão, aos poucos viraram declarações de amor insistentes e até ameaças de estupro e morte.
Assim, até conseguir encaixar o seu caso em uma brecha da Lei Maria da Penha, tornando-se uma das primeiras mulheres a usar a lei para um caso de perseguição, ela deixou de sair, foi diagnosticada com síndrome do estresse pós traumático e demorou muito para superar o medo.
Agora, sete anos depois, sentindo-se "mais forte", ela estreia "Stalking - Um Conto de Terror Documental", uma peça baseada na experiência que viveu, e compartilha com Universa como foi o período em que lidou com a perseguição.
"No início, tudo foi tão velado que não percebi"
Sou professora de teatro e ele era professor da mesma escola onde eu trabalhava. No início, tudo foi tão velado que não percebi. Me sentia mal de expor que alguém estava me incomodando, porque estava sem saber se era eu que estava vendo coisa onde não tinha. Hoje vejo que, desde o início, os indícios já estavam lá.
Foram anos que ele passou me stalkeando e, quando eu contava para as pessoas próximas, algumas minimizavam, falavam que ele só estava apaixonado. Mas uma pessoa apaixonada não faz o que ele fez.
Cheguei a ser afastada da escola onde trabalhava porque, tenho certeza, a escola ficou com medo que eu fosse morta na rua. E agora que resolvi contar essa história, é a primeira vez que me sinto eu mesma porque, por muito tempo, foi como se eu não fosse mais a pessoa que eu era. Vivia com medo o tempo todo e hoje estou realmente feliz de voltar aos palcos.
Eu o conhecia apenas como colega, cruzava com ele no refeitório em um dia da semana que nossos horários batiam. O lugar tinha mesas grandes e, em algum momento de 2015, não sei dizer exatamente quando, ele se sentou para almoçar do meu lado. Eu costumava almoçar rápido, mas geralmente ele me via e pedia para se sentar comigo.
Nesse mesmo ano, fiz um financiamento coletivo para levantar verba para a peça "Pulso" a partir da vida e da obra de Sylvia Plath, e ele ajudou com algum valor. Era pouco, me surpreendeu porque a gente nem se conhecia, mas depois disso ele começou a assistir todas as peças. Participou dos debates e voltou várias vezes.
Pensava que talvez fosse alguém que gostasse muito de teatro, mas ele sempre queria parar para me cumprimentar, era meio chato. Um dia ele foi assistir à peça e se declarou para mim. Naquela época eu era casada, usava uma superaliança no dedo, e respondi que o considerava apenas um colega de trabalho.
A gente continuou se cruzando na escola e, em determinado momento de 2016, precisei pedir para ele não me dirigir mais a palavra. Ele respeitou durante esse ano, mas, em 2017, quando a peça reestreou, as abordagens voltaram. Ele se sentava na mesa ao meu lado sem autorização e falava comigo quando havia outras pessoas para que eu não pudesse deixar de responder.
"Mensagens de 'eu te amo' evoluíram para falar de estupro e assassinato"
Até aquele momento, eu não havia reclamado porque ele me assediava fora do ambiente de trabalho. Um dia no corredor, no entanto, ele falou comigo enquanto eu estava no celular e continuei andando. Ele deu risada, correu atrás de mim e encostou no meu ombro. Me senti tão acuada que voltei para trás, dei de cara com uma colega e pedi para seguir com ela. Ela achou estranho e ele falou: "Nossa, não pode dar nem um oi?"
Eu tremia tanto de nervoso que ela me incentivou a levar o caso para a direção e pedi à escola que, no ano seguinte, já que o ano estava se encerrando, a gente não desse aula no mesmo dia.
Demorei para entender que havia algo muito errado. O que eu pensava era: "Como vou reclamar de uma pessoa que não fez nada?" Mesmo assim, a escola foi muito parceira e soube semanas depois que ele havia sido desligado.
Comecei o ano letivo de 2018 tranquila, mas, pouco tempo depois, ele descobriu meu telefone e começou a me ligar. Bloqueei o número, mas passou a me mandar e-mails e as mensagens, que começaram com "sinto a sua falta", "eu te amo", logo evoluíram para falar de estupro, assassinato.
Ele nunca escreveu diretamente que ia me matar, mas dizia que tinha tido um sonho em que uma pessoa o mandava fazer isso. A bina mostrava dez ligações dele por dia. Não chegava a tocar porque estava bloqueado, mas a ligação ficava registrada.
Soube que ele continuava indo a eventos abertos da escola e tomei a decisão de reunir todos os e-mails para mostrar à direção. As apresentações de teatro eram abertas ao público e queria pedir que ele não tivesse autorização para entrar.
"Tive transtorno do estresse pós traumático"
Aos poucos, parei de ir de carro para a escola e meu marido começou a me levar e buscar. Deixei de ir ao teatro porque pessoas que eu conhecia me diziam que tinham visto ele circulando em outras peças —ele ia nos teatros que eu já havia me apresentado para ver se me encontrava. Parei de sair sozinha.
Um dia ele foi tentar me encontrar na escola, durante meu horário de trabalho, e a escola decidiu me afastar. Foi a partir daí que contratei uma advogada porque eles queriam que eu tivesse uma medida de proteção para poder voltar a trabalhar.
E ele começou a ir na porta da casa da minha mãe. Ia na portaria, fazia serenata e se identificava como policial. Os porteiros, a essa altura, já estavam sabendo e, como eu tinha a medida protetiva, ligava para polícia e ele era detido por três horas até ser liberado.
O tipo de medida protetiva que eu tinha não prende a pessoa que descumpre, só detém, e por isso passei a ter realmente medo de sair. Comecei a ter febres, fiquei muito doente e fui diagnostica com transtorno do estresse pós traumático. Até hoje faço acompanhamento com minha psiquiatra e, na última consulta, há dois meses, o diagnóstico ainda foi transtorno de estresse pós traumático com somatizações corporais.
Em maio de 2019, fui apresentar uma peça em Recife e, duas horas antes da estreia, ele entrou no teatro dizendo que eu o estava traindo. Por sorte, havia uma delegacia em frente e, quando fiz boletim de ocorrência, pelo grau de perseguição, em outro estado, consegui enquadrar o meu caso na Lei Maria da Penha. A lei é para violência doméstica, mas fui uma das primeiras mulheres a entrar em uma brecha da lei que é a perseguição.
Foi somente depois disso que ele parou de me procurar porque agora, se ele descumprir algo, sabe que será preso. Há um peso maior do que o descumprimento de uma medida por importunação. Mesmo assim, ainda recebo e-mails falsos, que consigo identificar pela maneira de escrever.
Foi somente no fim do ano passado que passei a me sentir mais forte e a querer estar nos palcos novamente. Relutei muito em contar essa história porque tinha medo de que ele voltasse a me perseguir. Mas, à medida que eu falava para as pessoas sobre o que vivi, algumas amigas me contavam que já tinham vivido algo parecido. E a peça, no fim, não é sobre ele, mas sobre o que eu vivenciei e como estou aqui hoje, de pé, voltando a fazer teatro, indo ao mercado, dirigindo meu carro, saindo sozinha.
Até chegar à estreia de "Stalking", passei por um trabalho terapêutico muito intenso. Se não fosse minha terapeuta, minha psiquiatra, não sei como teria sobrevivido a tudo isso. Ainda há dois processos correndo --um cível e outro criminal--, que seguem em segredo de justiça, porque a Lei Maria da Penha é uma medida de proteção emergencial. Só quero que ele pare de me perseguir. Tudo o que espero é que a medida protetiva seja mantida para que ele não possa mais entrar em contato comigo.
Livia Vilela, 37 anos, é atriz e protagoniza a peça "Stalking - Um Conto de Terror Documental" no Centro Cultural São Paulo, em cartaz de 27/10 a 06/11.
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