Topo

Assédio sexual, moral e discriminação: como funciona o compliance da Globo?

Carolina Bueno, diretora de riscos e compliance da Globo - Sergio Zalis/Divulgação
Carolina Bueno, diretora de riscos e compliance da Globo Imagem: Sergio Zalis/Divulgação

Débora Miranda

De Universa, em São Paulo

28/10/2022 07h00

Esta é a versão online da newsletter de Universa enviada hoje (28). Quer receber a próxima edição da newsletter na semana que vem no seu email? Clique aqui e se cadastre. Assinantes UOL ainda podem ter 11 boletins exclusivos toda semana

"A Globo não comenta questões relacionadas ao setor de compliance, em razão do compromisso de sigilo previsto em seu código de ética." A frase se repete exaustivamente em todas as reportagens que tratam de denúncias de assédio sexual, moral ou discriminação feitas por funcionários da emissora. E o caso-símbolo disso acabou se tornando o de Dani Calabresa contra Marcius Melhem.

A história da humorista, que no final de 2019 fez internamente a primeira denúncia de assédio contra Melhem, levou o departamento de compliance da emissora a ficar famoso —embora a postura da Globo seja sempre a mesma: não comentar publicamente os casos em apuração nem decisões envolvendo funcionários denunciados. Todos os casos correm em sigilo.

Em entrevista exclusiva a Universa, Carolina Bueno, diretora de riscos e compliance da emissora, falou sobre como funciona o departamento, como as denúncias são recebidas e apuradas e o trabalho preventivo realizado para evitar que histórias como a de Melhem —que depois acabou sendo denunciado por quase uma dezena de mulheres— se repitam.

Compliance não é polícia

Em mais de uma hora de conversa, a única restrição era: não falar especificamente sobre nenhum caso. O precioso sigilo que a emissora faz questão de manter enfrenta, no entanto, uma grande resistência: a curiosidade do público que consome novelas, séries, humorísticos, telejornais e quer saber no que seus ídolos estão envolvidos fora de cena.

"É uma exposição muito diferente da exposição corporativa normal", reconhece Carolina. "Essa ligação que a gente tem com a sociedade traz uma responsabilidade ainda maior para a área de compliance, porque essas questões têm um interesse público diferente -mesmo quando se trata de alguém não conhecido. A responsabilidade do compliance com a isenção, a independência, a preocupação com a privacidade dessas pessoas é ainda maior. Diferentemente de outras empresas, aqui o debate extrapola o debate interno corporativo."

De fato. As denúncias contra Marcius Melhem, por exemplo, ultrapassaram os muros dos estúdios Globo e correm hoje no vai-e-vem da Justiça.

O julgamento público também é pesado quando as decisões da emissora não são equivalentes às expectativas de quem vinha acompanhando determinado caso. Ou muitas vezes, a forma como a Globo decide anunciar os rumos da história.

Segundo reportagem da revista "piauí", a Comissão de Ética (da qual o compliance faz parte) e a gestão da empresa decidiram, após ouvir as denunciantes, que o contrato de Melhem deveria ser encerrado. A versão que veio a público foi de um "encerramento de parceria em comum acordo".

Situação diferente se deu com as denúncias envolvendo Vinicius Coimbra, diretor artístico da novela "Nos Tempos do Imperador", acusado de racismo pelo elenco da novela. A Globo soltou, na ocasião, uma nota se posicionando contra o preconceito racial e desligou o diretor por assédio moral.

"Lidar com a expectativa do público requer muito equilíbrio. A gente precisa se pautar para que o trabalho seja correto e isento. O código de ética é o grande balizador dessa atuação, e não ceder às pressões públicas. Não é um trabalho que pode ser feito para necessariamente agradar as pessoas. É preciso critérios corporativos muito claros", afirma Carolina.

Ela acrescenta, no entanto, que a comunicação da emissora com relação a esses casos evoluiu. "Não falamos sobre os casos, mas falamos sobre nossos processos. Dar mais transparência aos processos internos é possível de ser feito e gera conforto para o público."

Com relação ao feedback interno, de funcionários que denunciam, ela diz que é positivo, embora reconheça que pode, sim, haver frustração.

"Dar retorno a quem denunciou, fazer essa conclusão, é uma etapa muito importante. Ainda que a [nossa] avaliação não tenha sido a que a pessoa esperava, houve uma uma escuta, o que ela disse foi levado em consideração. A gente recebe muitos feedbacks bacanas de pessoas dizendo que viram diferença. Mas, sim, pode haver frustração. Existe uma expectativa de quem faz o relato e nem sempre é a mesma da avaliação técnica deste relato [pós apuração]."

Há também um entendimento interno de que o compliance não tem a mesma função nem os mesmos poderes que a polícia ou a Justiça. As apurações respeitam limites corporativos, só chegam a determinado ponto -e o máximo que pode acontecer é a dispensa do funcionário. Então, expectativas de grandes movimentações acabam frustradas, a não ser que o caso chegue, como já dito acima, à Justiça.

"Nós não toleramos comportamentos abusivos nas nossas equipes. Se identificamos isso, é apurado e comprovado, a empresa tem uma série de medidas corporativas que podem ser tomadas, inclusive a demissão. Essa é a forma como a gente trata esses assuntos, a gente não extrapola essas medidas para além da atuação corporativa."

O caminho das denúncias

O time feminino do compliance da Globo (da esq. p/ a dir.): Daniella de Souza, especialista; Carolina Bueno, diretora; Catia Veloso, gerente; e Mariana Bruno (centro), gerente - Segio Zalis/Divulgação - Segio Zalis/Divulgação
O time feminino do compliance da Globo (da esq. p/ a dir.): Daniella de Souza, especialista; Carolina Bueno, diretora; Catia Veloso, gerente; e Mariana Bruno (centro), gerente
Imagem: Segio Zalis/Divulgação

O compliance da Globo existe desde 2015 e foi criado junto ao lançamento do Código de Ética da empresa. Mas, afinal, o que ele faz?

"A gente lida, obviamente, com as questões ligadas a assédio moral, sexual, relações interpessoais, discriminação, mas tem também questões de conflito de interesse, fraude, controles internos, vazamento de informação, por exemplo, como a violação às nossas políticas internas de segurança de informação e privacidade de dado. Obviamente também olhamos para as questões anticorrupção", explica Carolina.

Como a denúncia é feita?

  • Acesso ao canal de ouvidoria aberto aos funcionários e também a parceiros de negócios e terceiros que lidam com a Globo. Pode ser via telefone ou site
  • Denúncia é encaminhada ao departamento de compliance para avaliação
  • Caso se confirme que é um caso de responsabilidade do setor, é iniciada a apuração interna
  • A apuração pode envolver testemunhos de pessoas envolvidas, análise de documentos, mensagens ou e-mails
  • As conclusões são encaminhadas à Comissão de Ética, que recomenda a medida a ser tomada

As denúncias podem ser feitas de maneira anônima ou identificada. Segundo a diretora de compliance, entre 60% e 70% dos relatos são anônimos. "As pessoas normalmente preferem não se identificar, porque se sentem mais à vontade assim, querem se preservar."

Em casos em que o denunciado tem um cargo alto ou de chefia na empresa, a diretora garante que a apuração é feita da mesma forma. E se algum denunciante sentir retaliação no ambiente de trabalho, isso também é violação do código de ética e pode haver punição.

Ações contra assédio sexual

Combater o assédio sexual está entre as prioridades do compliance da Globo, afirma a diretora. No fim do ano passado, foi feita uma alteração no código de ética da empresa para, segundo Carolina, "deixar esses temas mais claros".

"A gente fala sobre conduta inadequada e traz mais clareza desses conceitos, para que as pessoas entendam que certos comportamentos que antes não eram vistos como graves são, sim, considerados violação ao código de ética da empresa."

Ela conta que têm havido também treinamentos focados em assédio sexual, moral e discriminação, situações a que as pessoas estão mais sujeitas no dia a dia. "A cara da nossa campanha de comunicação interna é a Ana Paula Araújo, jornalista da casa que escreveu um livro falando sobre assédio sexual. Mas é impossível falar de assédio sexual, de prevenção e proteção sem falar das questões de diversidade de gênero. Precisamos ter mais mulheres em posições de liderança na empresa para disseminar um ambiente de trabalho mais inclusivo e mais feminino, que proteja mais as mulheres."

Pensando nisso, Carolina trabalha diretamente com uma equipe que conta com grande participação feminina: são quatro mulheres e dois homens.

"Aqui na Globo, compliance é uma questão ligada a pessoas. Então, ter uma equipe diversa é fundamental. Falando especificamente sobre a questão feminina, eu acho que, sim, esse olhar e essa perspectiva trazem benefícios. Há um receio natural, por exemplo, de quem nos procura. E ter leveza para tratar disso ajuda muito. Esse é um atributo que está relacionado a um olhar mais feminino. Estabelecer relação de confiança é fundamental, e isso está muito associado a uma característica mais feminina."

E conclui: "O que é muito importante é estimular que as pessoas tragam relatos para a gente. Assim, poderemos ter um ambiente de confiança".