'Fake news matou minha mãe', diz filha de mulher que inspirou 'Travessia'
No dia 5 de maio de 2014, a dona de casa Fabiane Maria de Jesus foi cruelmente torturada por uma multidão. Ela saiu de casa, no bairro de Morrinhos, no Guarujá, litoral de São Paulo, para ir à igreja e, no caminho, foi confundida com uma suposta sequestradora de crianças --os linchadores tinham visto um retrato falado da suspeita que rodava a internet. Fabiane foi internada na UTI, mas não resistiu aos ferimentos, morrendo dois dias após o crime. Ela deixou duas filhas: Yasmin, então com 13 anos, e Ester, 1 ano.
O caso que chocou o país há quase dez anos inspira a trama da atual novela das nove da TV Globo, "Travessia", da autora Glória Perez, e reabre a discussão sobre um tema cada vez mais presente, as fake news. Para Yasmin, hoje com 21 e uma filha de 1 ano e 9 meses, a história nunca viu um fim --além das marcas emocionais deixadas pela barbárie, ela ainda luta na justiça contra o Facebook.
A ação indenizatória no valor de R$ 36 milhões (sendo R$ 12 milhões para cada parte; o viúvo e as duas filhas) foi julgada improcedente em primeira e segunda instâncias e agora aguarda julgamento de recurso extraordinário no Supremo Tribunal Federal (STF). "A questão central é que continuamos convictos de que o Facebook também é responsável. A empresa detinha na época e ainda detém o direito de apagar mensagens de ódio ou incitação à violência e de bloquear a página ou o perfil imediatamente, embora alegue que não. É o primeiro caso de fake news com morte do Brasil, e uma morte com requintes de crueldade medieval. E o Facebook não só não bloqueou, como ajudou a movimentar o conteúdo que matou Fabiane", diz Airton Sinto, advogado da família de Yasmin.
Embora Fabiane tenha sido espancada e arrastada pelas ruas por uma multidão, na ação criminal apenas cinco suspeitos foram identificados e presos, condenados à pena máxima. Os responsáveis pela divulgação do retrato falado e das informações falsas nunca foram penalizados. "Na época, fui procurado por um deputado federal que me perguntou se ele podia fazer algo como parlamentar. Eu disse que não porque não havia lei tipificando o crime, portanto, os responsáveis pela página não responderiam criminalmente. Ele me pediu, então, para ajudá-lo a criar um projeto de lei", conta o advogado.
Hoje, a família também aguarda a aprovação do projeto de lei 7544/2014, baseado no caso de Fabiane, que tipifica a incitação virtual ao crime no Código Penal.
Yasmin, que vive no bairro da Vila Zilda, no Guarujá, ao lado dos Morrinhos, compartilha com Universa sua trajetória desde o dia em que perdeu a mãe, em maio de 2014, e como tem sido reviver essa história com a novela.
"Era um dia comum. Minha mãe saiu cedo, como ela sempre fazia. E, no meio da tarde, ouvimos rumores que o pessoal tinha capturado uma mulher que estava sequestrando crianças. Eu nem fiz questão de saber mais, pensei que fosse bobagem, fofoca. Não imaginei que a tal moça era minha mãe. Aí, no fim da tarde, a filha da vizinha foi em casa e mostrou para o meu pai uma foto da minha mãe, já desmaiada e toda machucada. É aquela foto que todo mundo viu, que rodou a internet, dela deitada no chão com a bíblia. Eu estava do lado do meu pai e falei: 'Pai, é a mãe!" E ele respondeu que não, que aquela não era minha mãe. Ela tinha descolorido o cabelo naquela manhã, e ele ainda não tinha visto, então não a reconheceu.
No dia anterior, ela estava com um cabelo vermelho escuro. Aí fui lá no banheiro, peguei o pó descolorante e a água oxigenada que ela tinha usado e mostrei para ele. Meu pai saiu correndo de hospital em hospital atrás dela. Quando a encontrou, num hospital de Santo Amaro, ela já estava na UTI em estado grave. Foi um baque pra gente. Ficamos todos desesperados, meu pai, minha avó? Quando a gente iria imaginar que uma coisa dessas ia acontecer no nosso bairro? Com a nossa família?
A morte dela foi uma bomba. Uma bomba que repercutiu de muitas maneiras. Eu ainda era uma criança, tinha 13, quase 14 anos.
E um monte de repórteres veio para cima de mim. Queriam me filmar, me entrevistar, queriam que eu falasse na frente das câmeras junto com o meu pai. Hoje tenho outra mentalidade, estou mais velha, mas na época foi tudo muito difícil. E para todo mundo: meu pai, minha avó. Foi muito sofrimento. Minha irmã era muito nova, tinha 1 ano só. Mas foi uma coisa pela qual precisei passar. Aliás, passo até hoje.
Trazer essa história à tona pegou a gente de surpresa, foi tudo repentino. De repente, eu estava de novo dando entrevistas sobre o caso, e as primeiras abordagens foram agressivas, desconfortáveis. Mas estou acompanhando a novela "Travessia". A parte da perseguição foi pesada, me lembrou demais aquele dia, mas, no geral, estou gostando.
E acho que a novela é importante para o caso, para dar visibilidade, não deixar a história cair no esquecimento. Não deixar minha mãe cair no esquecimento. E também é de extrema importância para conscientizar as pessoas sobre as fake news. Porque foi isso o que matou minha mãe até antes de inventarem esse termo.
E hoje estamos vivendo essa era de fake news. A internet está aí para quem quiser ver, acreditar, compartilhar. É acessível e perigoso ao mesmo tempo.
É uma coisa de louco como esse caso transformou tudo, tanto no mundo real como na internet. E hoje as fontes são muito mais perigosas, mais trabalhadas do que em 2014, é mais fácil acreditar. Na época foi um retrato falado, um desenho fake que postaram na internet. A própria moça do tal retrato falado, com quem confundiram minha mãe, também era inocente. Ela não era uma sequestradora de crianças. Também foi vítima de mentira, de vingança. Ela escapou da morte, mas também sofreu, foi injustiçada.
O único culpado foi quem fez o retrato falado, inventou a história e compartilhou. Por isso, nunca vou deixar de reforçar: as pessoas precisam ter cuidado com o que postam, com o que compartilham, no que veem e acreditam. Uma mentirinha pode acabar com a vida de alguém.
Hoje tento me concentrar principalmente nas lembranças boas que tenho da minha mãe. Ela era uma pessoa boa. Era amiga, parceira. A gente contava tudo uma para a outra. Minha mãe falava que eu era a confidente dela. E ela também era a minha. Não existiam segredos entre a gente. Se eu estivesse passando por um momento difícil, ela estava ali do meu lado. Então sempre lembro dessa mãe amiga, parceira. Claro, lamento muito ela não estar aqui, não ter visto minha irmã crescer, não ter conhecido a neta dela. Minha irmã e minha filha se dão muito bem, brincam muito juntas. Para mim, isso é muito gratificante. Mas queria muito que minha mãe estivesse aqui para viver isso com a gente. Seria um sonho para ela."
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