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Mães se frustram na Justiça ao denunciar abuso sexual de pais contra filhas

Getty Images/iStockphoto
Imagem: Getty Images/iStockphoto

De Universa, em São Paulo

01/11/2022 04h00

"Minha popoca está doendo." Foi isso que a médica Amanda*, de 38 anos, ouviu de sua filha de três anos quando foi dar banho na menina, após a criança voltar de um final de semana na casa do pai. Orientada por seu advogado, ela levou a menina até a emergência de um hospital em Salvador, onde mora.

O episódio ocorreu em dezembro de 2021 e, desde então, Amanda seguiu por uma saga judicial para tentar esclarecer a suspeita de estupro de vulnerável. A última movimentação do processo, em setembro deste ano, a frustrou: o Ministério Público da Bahia arquivou a denúncia por falta de provas do crime.

Amanda conta que os laudos de psicólogos realizados pelo Instituto Viver —da própria Polícia Militar— não foram considerados pelo Ministério Público para a abertura do processo. Na decisão de arquivamento, a promotora cita o litígio entre o casal como um dos pontos de argumento. "Tenho laudos, testemunhas. O que mais é necessário para a abertura dessa ação?", questiona a mãe, que diz se sentir desamparada pela Justiça.

A arquiteta paulistana Fernanda*, 40, mãe de uma criança de 3 anos, sente a mesma frustração. Em janeiro de 2021, a criança fez o relato de um suposto abuso do pai. "Ela me contou, por meio de uma história lúdica, que alguém teria enfiado o dedo no bumbum", diz, além de ter mudado seu comportamento, como passar a não querer tomar banho.

Fernanda fez uma denúncia através da Casa da Mulher Brasileira em São Paulo, onde começou uma investigação, também foi arquivada. Em comum com a história de Amanda, existe a acusação, do outro lado, de alienação parental.

"Quem foi julgada, na prática, fui eu"

"O acolhimento na Casa da Mulher Brasileira foi maravilhoso, mas parou por aí. Logo na sequência, a polícia solicitou que uma psicóloga fizesse uma entrevista comigo, para produzir um laudo psicológico. Fui destruída. Minhas falas foram muito distorcidas. Quem foi julgada, na prática, fui eu."

"Infelizmente, vivo o risco de perder a guarda da minha filha."

O perito criminal Rildo Silveira, especializado em análise de crimes contra crianças e adolescentes, afirma que ainda existe despreparo de profissionais que atuam no Judiciário de crianças e adolescentes.

"Nossa dificuldade, nesses casos, é produção de prova. Lidamos com um fantasma: mesmo que a criança não verbalize, não tenha machucados ou vestígios legais, não significa que não houve abuso. Existem outros indícios que não podem ser manifestados em laudos, mas deveriam ser levados em consideração", diz.

"Já vi crianças que foram vítimas e, nas atividades que fazem parte do processo, não revelaram nada, mas, em outros momentos, mostravam que comportamentos de vítimas de situação abusiva. E aí, para o Judiciário, não aconteceu abuso."

O especialista diz que a alienação parental é um tema recorrente nessas situações. "Em muitos casos, a denúncia da mãe vira ação penal porque surge a acusação de que as mulheres queriam afastar os filhos após de término do casamento, e ela estaria se vingando com acusação de abuso sexual", afirma. "Isso vira um meio desleal para reverter uma acusação."

"Infelizmente existem pessoas que fazem falsas acusações e, quando estamos diante de uma situação verdadeira, é gerado esse preconceito."

Boletim e exame médico são primeiros passos

Universa conversou com especialistas para entender como é feita a escuta e apuração de denúncias envolvendo crianças.
A médica e pediatra Evelyn Eisenstein, professora aposentada da UERJ (Universidade do Estado do Rio de Janeiro), diretora da Clínica do Adolescente e colaboradora da Sipani (Sociedade Internacional de Prevenção ao Abuso e Negligência na Infância) explica que existe um protocolo para o atendimento de crianças e adolescentes em que há suspeita de abuso ou exploração sexual.

"O diagnóstico é delicado", diz a médica. A vermelhidão apontada pela filha de Amanda, por exemplo, pode ser causada pelo uso de produtos como fraldas ou por uma coceira, assim como pode ser, também, compatível com o abuso, por manipulação genital. Por isso, ela explica: uma suspeita de abuso infantil deve ser feita olhando vários outros fatores e indícios.

"Uma vez, atendi uma criança que sofria abuso sexual porque era forçado ao oral e o juiz queria prova do crime. A criança se expressou num desenho", diz a médica.

Criança deve ser escutada por profissional capacitado

A psicóloga Sandra Levy é perita, há 15 anos, do TJ-RJ (Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro), onde coordena o Núcleo de Depoimento Especial de Crianças e Adolescentes Vítimas ou Testemunhas de Violência.

Ela explica que as crianças são ouvidas durante a produção de provas e também no momento do depoimento ao juiz é importante que se siga um protocolo para isso. A abordagem com crianças, por exemplo, não pode ser sugestiva ou induzi-la a nada.

"Para uma pergunta muito específica, ela vai achar que precisa ter uma resposta, que o adulto precisa dessa resposta, fazendo com que seja induzida a ter uma memória sugestionada", diz.

Quando há suspeita de que uma criança sofre violência, é feito um boletim de ocorrência e, já nesse momento, a criança deve ser ouvida por um policial treinando numa técnica investigativa adequada para esse tipo de caso.

O boletim deve ser encaminhado para o Ministério Público, que define se acolhe ou não a denúncia e abre um procedimento para investigar se houve violência.

Neste processo, há o momento do testemunho em audiência. "É mais complexo que uma audiência simples, a criança é ouvida através do depoimento especial", diz, em referência às práticas que foram determinadas pela Lei do Depoimento Especial, de 2017.

O relato ocorre em uma sala reservada só com a criança e o entrevistador, um psicólogo especializado, e a conversa é ouvida por promotor, juiz e réus. A narrativa livre para que vítima possa recriar o que aconteceu à sua maneira.

"Me lembro de uma criança de cinco anos que relatou que, no banho com o seu agressor, tinha a presença de uma 'água viva'. Isso é uma forma de nomear e trazer sua percepção de forma natural", diz.

Além do momento da escuta da criança em juízo e de laudos médicos, pode ser feito laudos e avaliações psicológicas para o momento de produção de provas.

Juíza aponta outras alternativas

A juíza Cristiana Cordeiro, presidente da AJD (Associação Juízes para a Democracia), explica que, caso o MP arquive um inquérito por falta de provas, há ainda a possibilidade de um juiz pedir que o procurador-geral designe outro promotor e reavalie a investigação. Ou, com o surgimento de novas provas, abrir uma nova denúncia e recomeçar o processo.

Além do processo criminal, a juíza afirma que há outros caminhos para essas mães alcançarem a Justiça por meio das varas de família, como visita assistida, proibição de visitar e até mesmo a destituição familiar.

"Diante dessa barreira da Justiça criminal em não ter elementos suficientes para que essa pessoa venha a responder ao processo criminal, a Justiça cível é uma instância independente que também pode ser acionada", indica a magistrada.