Há 30 anos Madonna lançava 'Erotica': liberdade sexual, polêmicas e legado
Caio Delcolli
Colaboração para a Universa, em São Paulo
02/11/2022 04h00
?"Eu sei que não sou a melhor cantora ou a melhor dançarina, mas minha intenção não é essa. Quero ser provocadora e política", diz Madonna em uma cena do documentário "Na Cama com Madonna" (1991), que mostra os bastidores da turnê "Blond Ambition". A série de shows quase fez a popstar ser presa no Canadá por simular masturbação no palco e foi condenada pelo então papa, João Paulo II, que chamou de "o show de rock mais satânico da história" Antes, polícia e Vaticano soubessem de antemão o que a cantora estava aprontando para dali pouco tempo.
"Nós lemos bastante sobre fantasias sexuais, mas elas são do ponto de vista masculino. Não acho que há muitas mulheres colocando seus pontos de vista", defendeu a cantora, então com 34 anos, em entrevista à TV.
"Meu nome é Dita"
Lucy O'Brien, autora da biografia "Madonna 60 Anos" (ed. Agir, 2018), diz em entrevista a Universa que a popstar estava à frente de seu tempo. "Foi o primeiro grande risco comercial que ela assumiu", explica a jornalista britânica. "Ela foi tratada como uma pária e muitas pessoas não entenderam a profundidade do trabalho, que estava promovendo uma mensagem empoderadora para as mulheres."
A divulgação foi conturbada. Em entrevistas, a cantora lidou com muitas perguntas e comentários machistas, o que se estendeu pelos anos seguintes -e ela, é claro, rebateu com sua língua ferina. Em 1994, no talk-show de David Letterman, ela causou furor ao falar palavrões e fumar um charuto durante a entrevista. Madonna deu de presente a Letterman uma calcinha usada por ela. A Comissão Federal de Comunicações (FCC, na sigla em inglês) registrou várias reclamações --Madonna assumiu anos depois que estava sob efeito de maconha naquela noite).
O videoclipe de "Erotica" foi dirigido por Fabien Baron, e mostra Madonna no papel de Dita —com visual andrógino, máscara e um dente de ouro postiço
Por este filme, ela foi massacrada pela crítica especializada. Já por "Olhos de Serpente", a performance da cantora foi elogiada. A biógrafa diz achar que "Corpo em Evidência" não tem nada de espontâneo nas atuações, enquanto "Olhos de Serpente" é mais autobiográfico do ponto de vista emocional. Em uma cena, por exemplo, a personagem de Madonna relembra um estupro de que fora vítima.
"Madonna de fato foi estuprada quando havia chegado em Nova York, algo horrível que eu imagino ter impulsionado o feminismo dela", analisa.
O vídeo de "Deeper and Deeper" faz referências a Andy Warhol, tem no elenco a cineasta Sofia Coppola e o ator de pornô gay Joey Stefano
A turnê do disco, "Girlie Show", deu continuidade ao tema da sexualidade. Enquanto o ato inicial dramatiza um circo erótico, outro homenageia a disco dos anos 1970 e celebra a euforia da pista de dança com uma simulação de orgia. Na performance de "Like a Virgin", a diva se vestia com fraque e cartola, fazendo uma referência à libertinagem da Alemanha dos anos 1920 e à atriz Marlene Dietrich. "Girlie Show", de formulação semelhante a um musical da Broadway, marcou também a primeira vez que a cantora veio ao Brasil, com apresentações lotadas no Morumbi e no Maracanã.
A fase "Erotica" pegou tão mal para a cantora que ela precisou reformular sua imagem. Não que Madonna fosse estranha às transformações, mas a necessidade de reduzir os danos falou mais alto. O álbum seguinte, "Bedtime Stories" (1994), teve esse propósito --o sucesso de baladas românticas desse trabalho, como "Take a Bow" e "Secret", ajudaram a cantora a se revitalizar.
A coletânea "Something to Remember", com uma seleção de músicas sobre amor, e o musical "Evita" (1996), filme pelo qual Madonna finalmente conquistou respeito como atriz, também colaboraram com a recuperação.
"Aos que me infernizaram"
"Erotica" também sobreviveu. Com o passar dos anos, o álbum foi reconhecido como importante tanto para a artista quanto para a música pop. De acordo com a Rolling Stone, o disco "Lemonade" (2016), de Beyoncé, é para os protestos do Black Lives Matter o equivalente ao que o "Erotica" e "Sex" representam para "o amor e a intimidade sob a sombra de uma praga" daquela época.
"Fever" é cover da clássica música dos anos 1950. O videoclipe, em que Madonna se caracteriza como deusas, foi dirigido por Stéphane Sednaoui.
Hoje aos 64 anos, a rainha está passando por outra fase --uma revisionista. Ela tem trabalhado em reedições do próprio catálogo. O primeiro trabalho da nova leva é "Finally Enough Love", compilado dos 50 singles, em versões remixadas, que fizeram Madonna ser recordista de primeiros lugares na parada "Dance Club Songs", da Billboard. "Erotica", "Deeper and Deeper" e "Fever" foram incluídas na curadoria --sinal de que a cantora ainda honra o que fez naquela época.
Em 2016, a artista venceu o prêmio de "Mulher do Ano" da revista "Billboard". Emocionada, agradeceu pelo reconhecimento, a despeito de todos os anos de "misoginia escancarada, sexismo, bullying constante e abuso desenfreado". Ao se lembrar de "Erotica", contou que gostaria de ter tido o apoio de outras mulheres. Agradeceu aos fãs e mandou um recado aos que a "infernizaram": "Sua resistência me fez mais forte, me fez insistir mais, me fez a lutadora que sou hoje. Me fez a mulher que sou hoje. Então, obrigada".