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Há 30 anos Madonna lançava 'Erotica': liberdade sexual, polêmicas e legado

Madonna na turnê "Girlie Show", em 1993 - Steve Eichner/Getty Images
Madonna na turnê "Girlie Show", em 1993 Imagem: Steve Eichner/Getty Images

Caio Delcolli

Colaboração para a Universa, em São Paulo

02/11/2022 04h00

?"Eu sei que não sou a melhor cantora ou a melhor dançarina, mas minha intenção não é essa. Quero ser provocadora e política", diz Madonna em uma cena do documentário "Na Cama com Madonna" (1991), que mostra os bastidores da turnê "Blond Ambition". A série de shows quase fez a popstar ser presa no Canadá por simular masturbação no palco e foi condenada pelo então papa, João Paulo II, que chamou de "o show de rock mais satânico da história" Antes, polícia e Vaticano soubessem de antemão o que a cantora estava aprontando para dali pouco tempo.

O álbum "Erotica" e o livro de fotografias "Sex", que acabam de completar 30 anos, tornaram-se marcos na biografia da cantora. O disco traz Madonna encarnando a personagem Dita --inspirada na atriz alemã Dita Parlo--, uma dominatrix romântica que realiza fantasias sexuais. Frequentemente, é considerado pela crítica um dos mais ousados de Madonna, seja por tratar de tabus, como a epidemia de HIV e fetichismo, ou pelo espírito aventureiro da música.
Madonna em MTV Music Awards 1993 - Frank Micelotta Archive/Getty Images - Frank Micelotta Archive/Getty Images
Madonna em apresentação do "Girlie Show" no MTV Music Awards de 1993
Imagem: Frank Micelotta Archive/Getty Images
"Sex" trazia, por sua vez, fotografias de Steven Meisel e Fabien Baron, ambos grandes nomes do mundo fashion, e textos escritos pela cantora, como se fossem trechos do diário de Dita. Nas imagens, ela é a personagem mais uma vez, aparecendo em cenas de sexo a três, sadomasoquismo, bissexualidade e role-playing, além de evocar a estética punk. Aparecem também nos ensaios a modelo Naomi Campbell, o ator de pornô gay Joey Stefano e a atriz Isabella Rossellini, entre outros. "Muitas pessoas têm medo de dizer o que querem, e é por isso que elas não conseguem o que querem", diz um trecho.

"Nós lemos bastante sobre fantasias sexuais, mas elas são do ponto de vista masculino. Não acho que há muitas mulheres colocando seus pontos de vista", defendeu a cantora, então com 34 anos, em entrevista à TV.
Madonna em Wembley Stadium - Mick Hutson/Getty Images - Mick Hutson/Getty Images
Madonna no Wembley Stadium
Imagem: Mick Hutson/Getty Images
"Sex" chegou às lojas em 21 de outubro, um dia após o lançamento de "Erotica", com capa de alumínio e pesando um quilo. A embalagem trazia em CD a música "Erotic", espécie de ensaio da faixa que dá título ao álbum. Na festa de lançamento em Nova York teve gente cruzando o tapete vermelho de quatro no chão, guiado por uma coleira. O livro ficou três semanas seguidas em primeiro lugar na lista de best-sellers do "The New York Times" e vendeu mais de 1,5 milhão de cópias. Foi um escândalo.

"Meu nome é Dita"

"Madonna finalmente foi longe demais"?, questionava uma manchete do "Los Angeles Times". "Sex" foi banido em países como Irlanda, Japão e Índia. No livro "Striptease Culture: Sex, Media and the Democratization of Desire", ou cultura do striptease: sexo, mídia e a democratização do desejo, o jornalista de Brian McNair diz que Madonna havia se tornado um símbolo tanto para as feministas favoráveis à pornografia quanto às contrárias --só dependia do ponto de vista.
Livro ?Sex? - Reprodução - Reprodução
Fotografia do livro "Sex"
Imagem: Reprodução

Lucy O'Brien, autora da biografia "Madonna 60 Anos" (ed. Agir, 2018), diz em entrevista a Universa que a popstar estava à frente de seu tempo. "Foi o primeiro grande risco comercial que ela assumiu", explica a jornalista britânica. "Ela foi tratada como uma pária e muitas pessoas não entenderam a profundidade do trabalho, que estava promovendo uma mensagem empoderadora para as mulheres."

Lucy lembra de outro momento turbulento na carreira da cantora. Em 1991, o single "Justify My Love" --cuja letra é um poema erótico mais declamado do que cantado-- teve um videoclipe em preto-e-branco que foi banido pela MTV por retratar voyeurismo, bissexualidade e BDSM (Bondage, Disciplina, Dominação, Submissão, Sadismo e Masoquismo).
"'Justify My Love' introduziu a fluidez de gênero e o erótico ao pop mainstream e abriu caminho para 'Sex'", conta. Desde então, você pode ver a influência [de Madonna] na assertividade sexual de Britney Spears, Christina Aguilera, Nicki Minaj e Rihanna [por exemplo]."
"Erotica" e "Sex" foram incompreendidos, diz a jornalista, e tiveram seus valores artísticos ignorados. Combinando house music --que hoje vive um revival encabeçado por Beyoncé, com "Renaissance", e Lady Gaga, com "Chromatica"--, hip hop, jazz e reggae, "Erotica" é o disco que Madonna pediu ao produtor Shep Pettibone que soasse --como se tivesse sido gravado em um beco do Harlem--. Além da célebre faixa-título, "Erotica" tem outros hits icônicos da rainha do pop, como "Deeper and Deeper", "Rain" e "Bad Girl".
Imagem de "Sex", livro de Madonna fotografado por Steven Meisel - Foto: Reprodução - Foto: Reprodução
Imagem de "Sex", livro de Madonna fotografado por Steven Meisel
Imagem: Foto: Reprodução
Embora o livro tenha sido um best-seller, o álbum, por sua vez, tornou-se o menos bem-sucedido em vendas de Madonna nos Estados Unidos. Foi o primeiro dela a não estrear em primeiro lugar no ranking "US Billboard 200", tendo ficado em segundo. "Erotica "vendeu 6 milhões de cópias mundo afora --enquanto os anteriores, "Like a Prayer" (1989) e "True Blue" (1986), contabilizaram 15 milhões e 25 milhões, respectivamente.

A divulgação foi conturbada. Em entrevistas, a cantora lidou com muitas perguntas e comentários machistas, o que se estendeu pelos anos seguintes -e ela, é claro, rebateu com sua língua ferina. Em 1994, no talk-show de David Letterman, ela causou furor ao falar palavrões e fumar um charuto durante a entrevista. Madonna deu de presente a Letterman uma calcinha usada por ela. A Comissão Federal de Comunicações (FCC, na sigla em inglês) registrou várias reclamações --Madonna assumiu anos depois que estava sob efeito de maconha naquela noite).

O videoclipe de "Erotica" foi dirigido por Fabien Baron, e mostra Madonna no papel de Dita —com visual andrógino, máscara e um dente de ouro postiço

Em 1993, chegaram aos cinemas dois filmes que complementam a fase: "Corpo em Evidência" e "Olhos de Serpente", ambos thrillers eróticos. No primeiro, ela interpreta uma mulher acusada de matar o próprio marido durante uma transa, e no segundo, uma atriz vivendo uma confusão entre sua vida pessoal e o filme que está fazendo. Os dois longas contém sexo e nudez --em "Corpo em Evidência", Madonna pinga cera quente em Willem Dafoe em uma dessas cenas.


Por este filme, ela foi massacrada pela crítica especializada. Já por "Olhos de Serpente", a performance da cantora foi elogiada. A biógrafa diz achar que "Corpo em Evidência" não tem nada de espontâneo nas atuações, enquanto "Olhos de Serpente" é mais autobiográfico do ponto de vista emocional. Em uma cena, por exemplo, a personagem de Madonna relembra um estupro de que fora vítima.

"Madonna de fato foi estuprada quando havia chegado em Nova York, algo horrível que eu imagino ter impulsionado o feminismo dela", analisa.

O vídeo de "Deeper and Deeper" faz referências a Andy Warhol, tem no elenco a cineasta Sofia Coppola e o ator de pornô gay Joey Stefano


A turnê do disco, "Girlie Show", deu continuidade ao tema da sexualidade. Enquanto o ato inicial dramatiza um circo erótico, outro homenageia a disco dos anos 1970 e celebra a euforia da pista de dança com uma simulação de orgia. Na performance de "Like a Virgin", a diva se vestia com fraque e cartola, fazendo uma referência à libertinagem da Alemanha dos anos 1920 e à atriz Marlene Dietrich. "Girlie Show", de formulação semelhante a um musical da Broadway, marcou também a primeira vez que a cantora veio ao Brasil, com apresentações lotadas no Morumbi e no Maracanã.

A fase "Erotica" pegou tão mal para a cantora que ela precisou reformular sua imagem. Não que Madonna fosse estranha às transformações, mas a necessidade de reduzir os danos falou mais alto. O álbum seguinte, "Bedtime Stories" (1994), teve esse propósito --o sucesso de baladas românticas desse trabalho, como "Take a Bow" e "Secret", ajudaram a cantora a se revitalizar.

A coletânea "Something to Remember", com uma seleção de músicas sobre amor, e o musical "Evita" (1996), filme pelo qual Madonna finalmente conquistou respeito como atriz, também colaboraram com a recuperação.

"Aos que me infernizaram"

Madonna é uma sobrevivente, analisa Lucy. E é o que a cantora deixa claro na faixa "Human Nature", de "Bedtime Stories". "Eu não me desculpo / É a natureza humana", ela canta. "Você tentou me empurrar para dentro de sua salinha estreita / E me silenciar com amargura e mentiras."

"Erotica" também sobreviveu. Com o passar dos anos, o álbum foi reconhecido como importante tanto para a artista quanto para a música pop. De acordo com a Rolling Stone, o disco "Lemonade" (2016), de Beyoncé, é para os protestos do Black Lives Matter o equivalente ao que o "Erotica" e "Sex" representam para "o amor e a intimidade sob a sombra de uma praga" daquela época.

"Fever" é cover da clássica música dos anos 1950. O videoclipe, em que Madonna se caracteriza como deusas, foi dirigido por Stéphane Sednaoui.

Hoje aos 64 anos, a rainha está passando por outra fase --uma revisionista. Ela tem trabalhado em reedições do próprio catálogo. O primeiro trabalho da nova leva é "Finally Enough Love", compilado dos 50 singles, em versões remixadas, que fizeram Madonna ser recordista de primeiros lugares na parada "Dance Club Songs", da Billboard. "Erotica", "Deeper and Deeper" e "Fever" foram incluídas na curadoria --sinal de que a cantora ainda honra o que fez naquela época.

Em 2016, a artista venceu o prêmio de "Mulher do Ano" da revista "Billboard". Emocionada, agradeceu pelo reconhecimento, a despeito de todos os anos de "misoginia escancarada, sexismo, bullying constante e abuso desenfreado". Ao se lembrar de "Erotica", contou que gostaria de ter tido o apoio de outras mulheres. Agradeceu aos fãs e mandou um recado aos que a "infernizaram": "Sua resistência me fez mais forte, me fez insistir mais, me fez a lutadora que sou hoje. Me fez a mulher que sou hoje. Então, obrigada".