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'Choque era o 'bom dia' deles': torturadas na ditadura revisitam história

Célia Rocha foi presa durante a ditadura militar e deu seu depoimento para projeto sobre o DOI-Codi - Divulgação
Célia Rocha foi presa durante a ditadura militar e deu seu depoimento para projeto sobre o DOI-Codi Imagem: Divulgação

De Universa, em São Paulo

02/11/2022 04h00

Aos 23 anos, em 1970, a arquiteta Célia Rocha Paes foi presa pela ditadura militar. Até hoje, ela se lembra quando agentes da Oban (Operação Bandeirantes) foram até sua casa e a levaram, com seu companheiro, em uma perua Chevrolet C-14 até a rua Tutoia, 921, na Vila Mariana, em São Paulo. Era ali que ficava o DOI-Codi (Destacamento de Operações de Informações do Centro de Operações de Defesa Interna), um ponto de repressão política e de tortura. Quanto tempo exatamente ficou ali? Ela não se recorda. "Acredito que três semanas", diz, em um esforço de memória.

Ela foi separada de seu companheiro e levada a uma ala feminina do DOI-Codi. Ali, foi colocada em uma cela onde havia outras duas mulheres. Já o nome das colegas, ela se lembra: Maria de Lourdes e Maria Tavares. "Eram baianas e estavam ali porque seriam ligadas a [Carlos] Marighella. Soube que Maria de Lourdes tinha sido muito torturada. Mas elas saíram dias depois. Não conversamos muito."

Célia foi presa por uma suposta participação em um grupo político que atuava clandestinamente —do qual não era integrante. "Apanhei e tomei choques, mas isso todo mundo recebia, era quase o 'bom dia' deles. O que mais me angustiava era o fato de meu companheiro ser epilético e precisar de um remédio quando tinha crises. Nessas situações, você gasta tanta energia com esse lado, se preocupando com as pessoas, que se esquece de si."

A arquiteta contou sua história em uma longa entrevista para um projeto de pesquisadores de diversas instituições que vem fazendo uma pesquisa arqueológica, histórica e forense na antiga sede do DOI-Codi. Esse é o primeiro passo para a transformação do local, onde funciona uma delegacia de polícia, em um museu.

Um dos objetivos é revisitar a história do local, e consequentemente da própria ditadura, a partir da visão feminina, explica a historiadora Deborah Neves, técnica da UPPH (Unidade de Preservação do Patrimônio Histórico) da Secretaria de Estado da Cultura de São Paulo), e que coordena o grupo de trabalho sobre o DOI-Codi.

"Sentimos falta dessa perspectiva histórica e de focar nos relatos das mulheres, para entender também as dinâmicas de gênero", diz.

"Tive que apagar minha história", diz ex-presa política

A arquiteta Célia Rocha junto com militantes do PCdoB em 1978 - Reprodução - Reprodução
A arquiteta Célia Rocha (à esquerda) com militantes do PCdoB, em 1978
Imagem: Reprodução

Quando foi presa, Célia havia se formado há um ano em arquitetura no Mackenzie. Ela entrou na instituição em 1964, ano em que foi instaurado o regime militar no país, e participou do movimento estudantil, um dos setores mais ativos na luta contra a ditadura naquele período.

"Participei das passeatas, das manifestações em protesto ao assassinato do estudante José Guimarães [secundarista morto aos 20 anos por agentes da ditadura na rua Maria Antônia]. Fui me envolvendo e tendo contato com organizações de esquerda, principalmente a Ação Popular, que tinha influência da Igreja Católica, da teologia da libertação, e ao Partido Comunista do Brasil", conta.

Assim que se formou, Célia começou a trabalhar em um escritório de arquitetura de Rodrigo Brotero Lefèvre, ligado ao grupo político VAR (Vanguarda da Arquitetura no Brasil).

"Naquela época, meu companheiro foi preso numa ação de rua, e eu o visitava na prisão, no Dops (Departamento de Ordem Política e Social). O Rodrigo, então, me pediu para entrar em contato com outras pessoas do VAR que eram ligadas a ele e que estavam presas lá. Também colaborei com um pedido dele para fazer levantamento sobre indústrias e o sistema elétrico de São Paulo. Mas eram coisas bastante pontuais", diz.

No final de 1970, os arquitetos que pertenciam ao VAR foram presos. "Eles foram muito torturados. A partir da queda deles, eu caí também."

"Assim que soube que Rodrigo foi preso, limpei minha casa e eliminei qualquer vínculo material que pudesse me comprometer, como esse levantamento e material de organizações consideradas clandestinas. Quando eles me buscaram, não tinha nada que mostrasse vínculo meu com qualquer organização clandestina. Só tinha alguns livros que podiam ser comprados em livrarias", afirma.

Fachada da antiga sede do DOI-Codi na Vila Mariana, em São Paulo - Rovena Rosa/Agência Brasil - Rovena Rosa/Agência Brasil
Fachada da antiga sede do DOI-Codi na Vila Mariana, em São Paulo
Imagem: Rovena Rosa/Agência Brasil

Célia ficou três semanas no DOI-Codi, onde militantes eram alvo de torturas sanguinolentas para que dedurassem uns aos outros. Virou o ano lá e, depois que os militares viram que ela não tinha nenhuma informação para passar, foi transferida para o Dops, onde ficou presa por três meses.

Na sequência, a arquiteta foi enviada para a Penitenciária de Tiradentes e liberada em junho daquele ano.

Ela continuou sua militância no PCdoB, onde foi coordenadora estadual do partido, e entrou na clandestinidade logo após a prisão. "Foi um dos períodos mais difíceis porque tive que apagar minha história, e isso deixa muitas marcas emocionais", diz.

"Sempre estarei à disposição para dar meu relato"

A arquiteta chegou ao projeto que faz a arqueologia do DOI-Codi, cinco décadas depois de ser presa, por meio de conhecidos que também eram militantes, na época, e também foram entrevistados. Ela conta que se colocou à disposição para conversar com os historiadores e com Universa pela importância de falar sobre aquele período histórico.

"Sempre que me pedirem, vou estar à disposição porque é fundamental resgatar essa história. Em 1988, quando saí da clandestinidade, após a anistia, e voltei a trabalhar como arquiteta, fui trabalhar em um escritório e tinha uma menina jovem, estudante de design da Universidade Mackenzie. Disse algo sobre a ditadura, e ela perguntou: 'Ditadura? Que ditadura?'. Isso quatro anos após o fim do regime. Não conseguimos fazer nenhuma avaliação para o futuro se não entendemos o que ocorreu no passado."

Grupo vai procurar mensagens escondidas em paredes

Estagiárias da UFMG fizeram o escaneamento 3D do DOI-Codi sob articulação da arqueóloga Claudia Plens - Divulgação - Divulgação
Estagiárias da UFMG fizeram o escaneamento 3D do DOI-Codi sob articulação da arqueóloga Claudia Plens
Imagem: Divulgação

Dos sete pesquisadores do projeto, seis são mulheres — sob coordenação geral da historiadora Deborah Neves.

O trabalho começou em agosto, com a inserção de um equipamento que vai tentar localizar as possíveis alterações realizadas nas paredes e no chão ao longo dos anos. A arqueóloga Cláudia Regina Plens, coordenadora do projeto de pesquisa e do LEA (Laboratório de Estudos Arqueológicos) do Departamento de História da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo), conseguiu apoio de um órgão para incentivo à pesquisa no país para fazer a arqueologia forense do edifício.

"Vamos tentar fazer algo inédito, que nunca fizemos no Brasil: além de colocar métodos tradicionais, como georreferenciamento e escaneamento 3D, faremos uma limpeza e descamação das paredes camadas e escavação do chão para resgatar vestígios e indicar alguma coisa que aconteceu lá que ainda não sabemos", conta.

"Há relatos de pessoas que ficaram presas afirmando ter deixado mensagens nas paredes. E o edifício foi pintado diversas vezes. Caso encontremos vestígios de sangue, por exemplo, pretendemos usar um método genético para ver se há preservação de DNA e comparar o sangue com as vítimas e familiares."

Olhar feminino impacta pesquisa

Cláudia diz que o olhar feminino trouxe mais sensibilidade para os processos de pesquisa no local, principalmente na escuta de quem passou por lá.

"Já na primeira semana, quando fomos utilizar o equipamento para começar a investigação, ouvimos muitos policiais que queriam conversar, que têm vontade de falar as informações que sabem, mas nunca tiveram abertura."

O arquiteto Silvio Oksman, o arquéologo Andres Zarankin, a historiadora Deborah Neves e as arqueólogas Claudia Plens e Aline Carvalho em frente ao DOI-Codi - Divulgação - Divulgação
O arquiteto Silvio Oksman, o arquéologo Andres Zarankin, a historiadora Deborah Neves e as arqueólogas Claudia Plens e Aline Carvalho em frente ao DOI-Codi
Imagem: Divulgação

Sua colega, Aline de Vieira Carvalho, pesquisadora do Núcleo de Estudos e Pesquisas Ambientais da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas), onde coordena o Laboratório de Arqueologia Pública Paulo Duarte, será a responsável pela equipe de arqueologia pública do projeto — ou seja, que fará a ponte entre o que foi descoberto pelos pesquisadores e a comunidade.

"É um tema polêmico e do Brasil dos últimos tempos, um país que vê o crescimento da extrema direita. Nossa proposta é encontrar formas de diálogo, exposição e participação nos trabalhos de arqueologia", diz Aline.

"Já temos muitas pesquisas sobre a ditadura militar e de altíssima qualidade. A grande novidade é a materialidade da nossa. Nosso foco é esse espaço físico", diz.

Coronel levava família à local de tortura

Segundo Aline, a ideia é ir a fundo em outras questões que consideram ainda pouco esclarecidas. "Por exemplo, alguns relatos apontam que Brilhante Ustra [coronel que coordenava o local] levava a família dele para aquele espaço. Queremos entender como funcionava a mistura entre o público e privada, qual era essa função dessa família dentro desse espaço de tortura", diz.

"Nos colocamos muitas vezes nos lugares das mães, temos relatos de pais e filhos torturados juntos, absolutamente grotesca. É um tema que começamos a explorar ainda e já está aparecendo suas pontas."

O projeto ainda não tem um cronograma para entregas porque precisa finalizar burocracias para conseguir autorizações, por exemplo, para as escavações no edifício, que é tombado desde 2014. Além disso, há necessidade de conseguir mais financiamento para o andamento das pesquisas.

O Ministério Público de São Paulo ajuizou uma ação para solicitar que o Estado de São Paulo garanta a preservação do edifício.

O projeto para transformar a antiga sede do DOI-Codi em memorial já foi garantido pela Justiça: há um ano, o juiz José Eduardo Cordeiro Rocha, da 14ª Vara da Fazenda Pública do Estado de São Paulo, concedeu liminar favorável para que isso aconteça. A ideia é seguir o exemplo de outros países que também foram vítimas de ditaduras, como a Argentina, que transformou a Esma (Escola de Mecânica da Armada), o mais emblemático centro de torturas do país, em museu.

"Queremos chegar na construção de um espaço dedicado à memória. Precisaremos de financiamento e de vontade política", diz Aline, em referência ao governo do Estado, que ano que vem será administrado por Tarcísio de Freitas (Republicanos), governador eleito no último domingo (30).