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'Meu filho nasceu prematuro, fez 17 cirurgias e hoje divide o palco comigo'

A multiartista Soraia Costa - Arquivo Pessoal
A multiartista Soraia Costa Imagem: Arquivo Pessoal

Fernanda Grilo

Colaboração para Universa, em São Paulo

05/11/2022 04h00

Soraia Costa, 40 anos, nasceu em Limeira, interior de São Paulo, e viu a adolescência privilegiada ruir ao sofrer um Acidente Vascular Cerebral (AVC) aos 14 anos e perder parte dos movimentos do lado direito do corpo. Já adulta viveu um drama quase inconcebível para uma mulher: ter que escolher se quer (ou não) ser mãe de uma criança com muitos problemas de saúde, depois de perder um dos bebês gêmeos aos seis meses de gestação —e sem nem mesmo saber que estava grávida.

Nesse relato a Universa, a atriz, diretora, roteirista e fotógrafa conta como mergulhou nas camadas mais profundas de suas emoções para superar medos, preconceitos, doenças, machismo e a invisibilidade em uma trama dramática da vida real e cheia de reviravoltas.

"Eu tinha 14 anos quando sofri um AVC. O lado direito do meu corpo foi afetado, assim como minhas habilidades motoras. Foram quatro anos de recuperação que exigiram paciência e redescobertas, como, por exemplo, utilizar a mão esquerda (e todo esse lado do meu corpo) para voltar à normalidade. No auge da vida, tive que reaprender a ler, escrever, tudo —além de tomar remédio anticonvulsivante para sempre. Foi neste momento que questionei sobre o meu lugar no mundo.

Quando percebi que já tinha superado os problemas mais graves do AVC, apesar de algumas sequelas, fui viver e me formei em artes cênicas pela Universidade Estadual de Londrina (PR). Comecei a trabalhar como diretora, atriz, dramaturga, fotógrafa e videomaker.

Decidi, então, morar em São Paulo, no apartamento de um amigo. Estava completamente perdida naquela cidade gigantesca, até que um dia fui 'expulsa' de casa. Esse meu amigo tinha marcado um encontro e queria curtir a dois. Lembro que me deu R$ 4 e mandou ir tomar um suco.

Eu poderia ser apenas mais uma pessoa recém-chegada do interior, que se perdeu na cidade e foi parar em um bar. Mas, como aprendi na terapia, 'tudo que não é surpreendente, não me interessa'. Sentei no clássico bar Charme da Paulista, em frente ao Masp, na Avenida Paulista, pedi o tal do suco e um pão de queijo. Foi ali, sozinha, que conheci o David.

Depois de troca de olhares e outras idas ao bar para vê-lo, um dia o "encontro" aconteceu e foi arrebatador. Ele foi até a mesa e disse: "oi, você voltou", e eu respondi "sim, voltei porque você vai ser o pai dos meus filhos". E ele não caiu fora, mesmo sendo austríaco e estando apenas de passagem pelo Brasil.

Naquele dia, David estava comemorando 28 anos, e segundo a astrologia (a cada 28 anos, o planeta dá uma volta completa em torno do sol, o que representa uma virada de chave na vida), essa idade significa o retorno de Saturno. É isso, quando uma mulher entra na vida de um homem é um presente, mudança.

Não nos desgrudamos mais e pouco tempo depois, estava eu, perdida de novo em uma cidade desconhecida, só que desta vez Viena, ao lado do meu amor.

"Você tem 12 horas para decidir se vai seguir com a gestação"

Documentário teatral "sete cortes até você" - Divulgação - Divulgação
Soraia com Valentino recém-nascido, quando ficou internado na U.T.I
Imagem: Divulgação

A psicanálise diz que o primeiro sonho em um lugar novo é um presságio. Na minha primeira noite em Viena, sonhei que estava embaixo d'água, segurando um bebê sem boca. O choque veio com o fato de estar na piscina. Não sei nadar, e esse não é um trauma superado.

Não refleti mais sobre aquele momento, mas com seis meses de relacionamento, e ainda aguardando a regularização dos documentos, senti uma dor forte, uma cólica e precisava de ajuda. Corri até o posto da Cruz Vermelha porque não podia revelar meu nome e origem para não correr o risco de ser deportada, mas eles me atenderam e foi então que um de meus sonhos começou a virar realidade: ser mãe.

Mas, enquanto sentia as dores, percebi que algo gelatinoso havia saído de meu corpo. Exames foram realizados e, de repente, era como se eu não existisse mais. Os médicos passaram a tratar tudo com o meu marido, que chegou até mim e contou: "Amor, você está grávida". Soube da pior forma, com violências psicológica e médica, que estava grávida de gêmeos, e tinha perdido um dos fetos. A partir daí, foi uma avalanche de torturas, que fizeram meu corpo e mente definharem.

Além disso, ouvi do enfermeira: "Você está grávida de seis meses, acabou de sofrer o aborto espontâneo de uma das crianças, e a outra tem uma série de problemas de saúde, como sopro no coração, fissura labiopalatina, má formação genética e anomalias cromossômicas que iremos avaliar. A senhora e seu marido têm 12 horas para decidir se vão continuar com a gestação ou fazer o procedimento para a retirada da criança, pois na Áustria o aborto legal só pode ser realizado até 24 semanas, e você completará esse período amanhã". Essa foi a condução protocolar da enfermeira; ela falou como se tudo aquilo não fosse algo cruel e insano.

Do céu ao inferno

Naquele momento, me tornei mãe e encontrei minha fiel companheira: a culpa. Ela vem desde o momento que você sabe da gravidez. Naquela interminável noite, fui do céu ao inferno, pensei de tudo, avaliei, chorei e principalmente me perguntei: "Por que comigo?", "Por que comigo?", "Por que comigo?" Era a tal da idealização do filho perfeito indo embora, com a mesma sensação de uma cirurgia sem anestesia recortando todas as camadas da minha pele.

Documentário teatral "sete cortes até você" - Divulgação - Divulgação
Valentino
Imagem: Divulgação

As horas passaram e recebemos a visita de uma ginecologista-obstétrica que conhecia o Brasil —ela amava a Bahia— e depois de tanta frieza e descaso vividos com os demais médicos do Hospital da Universidade de Viena, ela fez o questionamento que me trouxe de volta à superfície: "Onde foi que o amor pelo seu filho mudou quando descobriu que ele não era perfeito?".

Ali estava definido o nascimento de Valentino Manolo.

"Eu sei que vocês gostam de usar biquíni pequeno"

Eu não passei por uma cesárea, mas pela mais pura violência obstétrica que uma mulher pode viver. Apenas dez dias depois do aborto, ainda com seis meses de gravidez, a contração voltou e a certeza de que a hora do parto tinha chegado. Valentino estava com muito líquido amniótico no estômago, as contrações ficaram fortes e foi preciso intervir.

Mas, para a equipe médica, eu continuava invisível. Não me perguntaram nada: se eu tinha preferência pelo tipo de cirurgia, alergias, remédios de uso contínuo, a roupinha que ele ia usar depois do nascimento. Apesar de não poder falar, ouvia tudo, até o médico dizendo para ficar tranquila que iria fazer o corte da cesárea bem embaixo porque sabia que as brasileiras gostavam de usar biquíni pequeno.

Nasceu, silêncio! Valentino chegou ao mundo no dia 21/02/2008, com dois quilos e 45 centímetros. Queria ver meu filho, pedia para deixarem ver meu filho, mas não aconteceu. Pouco tempo depois, eu ainda na maca, a enfermeira veio "apresentar" Valentino para mim. Ela, com voz de boazinha, mostrou duas fotos do meu filho que eu nunca tinha visto e pediu para eu escolher qual seria colocada no cartão postal da maternidade.

Valentino precisou de cuidados médicos logo após o seu nascimento e foi levado para outro local. Não pude abraçá-lo. Não me deram o direito de olhar para aquela criança frágil, que eu tinha consciência de que tudo poderia acontecer com ele naquele curto espaço de tempo.

Soraia, Geronimo e Valentino - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Soraia, Geronimo e Valentino
Imagem: Arquivo pessoal

Fui para o quarto, estava exausta e medicada, dormi profundamente por 12 horas. Acordei com a sensação de estar perdida e sabendo que algo estava acontecendo. Consegui ver, abraçar, ficar um pouquinho com meu filho e devolvê-lo aos médicos.

Desenvolvi uma depressão pós-parto. Além de todas as culpas anteriores ao nascimento do Valentino, ainda precisava superar aquela violência. Ficou um vazio no lugar em que deveria ter vivido algo que não aconteceu naquele momento.

Meu filho era prematuro, tinha fissura labiopalatina, fissura no palato, sopro cardíaco e atresia de esôfago. Em quatro meses de vida, Valentino foi operado sete vezes. Ali, a minha missão era ser a guardiã dele.

O trabalho, amigos, família, projetos para o futuro e vida pessoal já não existiam. Eu contei com o apoio do David desde o começo, ele também quis ser pai do Valentino e estávamos juntos nessa, mas enquanto eu vivia para o nosso filho e pelo nosso filho, o pai não deixou de fazer o tão sonhado doutorado.

Morando em um quarto de hospital, com um filho prematuro que a todo momento saía para ser operado sem expectativa de volta, mais uma vez tive que lidar com a contestação da maternidade. Para as enfermeiras, a culpa era minha do meu filho não comer, eu que dava a mamadeira de forma errada e elas sempre voltavam com a frase torturante: "Ele precisa ganhar peso para ir para casa". Eu tinha 26 anos e não conseguia sair do círculo vicioso da culpa. Claro que fazia da maneira certa, mas meu filho tinha uma fissura no palato, problema no estômago. Eu precisava de ajuda.

Com oito meses e quatro quilos, Valentino enfim foi para casa, mas sempre dividiu o nosso tempo entre o lar e o hospital. O garoto chega a ter mais cirurgias do que idade: são 17 operações em 14 anos.

Quando ele completou 4 anos, decidimos voltar ao Brasil e morar em São Paulo. Ele seguiu com os tratamentos, escola, vida social e amorosa, trabalho.

Documentário teatral "sete cortes até você" - Divulgação - Divulgação
Mãe e filho em cena
Imagem: Divulgação

Quando a vida parecia entrar no eixos e eu estava decidida a retomar a carreira artística, foi decretada a pandemia da Covid-19. Tive que lidar com o isolamento, o medo de reviver o pesadelo de hospitais e o fim do meu casamento de quase 15 anos porque o meu ex-marido "queria viver a vida dele".

Para piorar, o que parecia ser um procedimento simples levou meu filho a ser entubado novamente. Mesmo com a pandemia, os médicos insistiram que Valentino realizasse uma septoplastia antes do espigão da adolescência que o ajudaria a respirar melhor. A cirurgia foi mais difícil do que estava previsto, não havia espaço para a passagem de ar nos pulmões e levaram o menino para a U.T.I.

Documentário teatral "sete cortes até você" - Divulgação - Divulgação
Valentino, em 2020, antes de passar por cirurgia
Imagem: Divulgação

Valentino está na crista do sucesso e cheio de vitalidade. Ele também escolheu a carreira artística, tem mais experiência no audiovisual do que eu, participou da série "Escola de Gênios", no canal Gloob, atuou em filmes, e agora estreou no teatro ao meu lado, no espetáculo "Sete Cortes até você" (em cartaz até dia 6 de novembro, no Tusp). O Valentino é um cara bem resolvido, diz não sofrer bullying e por ser dessa geração digital, sofre muito menos do que nós com os haters, por exemplo.

Passado mais esse sufoco, retomei o protagonismo e escrevi a peça, que na verdade é uma performance com toques de cinema e quadrinhos. Eu e Valentino atuamos e a produção traz fotos e vídeos captados ao longo deste período, as interações nas redes sociais e intervenções que ajudam a entender a dimensão do que estamos compartilhando no palco.

Soraia em cena do documentário teatral "Sete Cortes Até Você!" - Divulgação - Divulgação
Mãe e filho em cena de "Sete Cortes Até Você"
Imagem: Divulgação

Esses dias, comecei a chorar, mas não de tristeza, de paz, de pensar em como vivemos tudo isso e estamos transformando em narrativa. Essa peça é uma honra para mim, ganhamos o 7° Edital de Dramaturgia em Pequenos Formatos Cênicos do CCSP, em 2020. Ela mostra que nem todo mundo é mãe, mas todo mundo é filho, sempre tem alguém, na maioria das vezes mulher, que cuidou de você."

Soraia Costa, 40 anos, é atriz, diretora, fotógrafa, roteirista, e mãe de Valentino, 14, e mora em São Paulo.