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'Não aceitaria papel como gueixa', diz Yohama Eshima, de 'Travessia'

A atriz curitibana Yohama Eshima - Thiago Antonovas
A atriz curitibana Yohama Eshima Imagem: Thiago Antonovas

Denise Takeuchi Meira do Amaral

Colaboração para Universa, em São Paulo

08/11/2022 04h00

Kelly Yohama Eshima passou a vida sendo chamada de Kelly. A atriz, que se destacava quando menina declamando poesias e criando coreografias na escola, em Curitiba, só descobriu sua verdadeira força ao assumir seu nome nipônico, aos 30 anos. De ascendência japonesa, indígena e italiana, ela se inscreveu apenas como Yohama no curso de teatro na Cesgranrio, no Rio, em 2018, por sugestão de um amigo tarólogo. Segundo ele, quando a atriz passasse a usar verdadeiramente a sua voz, sua vida se transformaria. E não deu outra.

De lá para cá, Yohama, que já vinha chamando a atenção na cena teatral do Paraná —com montagens marcantes como "Madame Butterfly" e participando de companhias como Armadilha Cia de Teatro, mesmo grupo do conterrâneo Alexandre Nero- ganhou muito mais projeção. Ela foi selecionada para atuar na novela "Amor sem Igual", da Record, em 2020, no filme "Eike - Tudo ou Nada", sobre a vida de Eike Batista, filmado em 2021, e na novela "Travessia", da Globo, em que interpreta a delegada Yone, no núcleo de Giovanna Antonelli.

"Yohama trouxe uma mudança muito positiva na minha vida. Me abriu para uma potência de vida que até então não tinha coragem para acessar", conta a atriz em entrevista por vídeo a Universa de sua casa no Jardim Botânico, no Rio. Ao fazer o teste para a novela, que tem como mote a era da internet, inteligência artificial e redes sociais, ela revela que a personagem não tinha uma rubrica "asiática" no roteiro: "Ela é somente uma policial que trabalha no Rio. Afinal, existem pessoas amarelas no Rio de Janeiro", ironiza.

Helo (Giovanna Antonelli) e Yone (Yohama Eshima) em Travessia - Arquivo Pessoal - Arquivo Pessoal
As personagens Helô (Giovanna Antonelli) e Yone (Yohama Eshima) em "Travessia"
Imagem: Arquivo Pessoal


Apesar de parecer óbvio, a escolha de personagens amarelos para papéis comuns começou a ganhar espaço somente há pouco tempo na produção nacional. A primeira atriz amarela a protagonizar uma novela foi Ana Hikari, em "Malhação", só em 2017. "Fico feliz que os personagens estereotipados estejam perdendo espaço. Não sou a vendedora de pastel ou a vendedora de "chingling". Me sinto vitoriosa", comemora.

Se a realidade hoje permite certo avanço —apesar dos atores e atrizes brancos ainda serem os protagonistas, sobrando quase nenhum espaço para negros, amarelos e indígenas— na época em que Yohama decidiu estudar teatro, quando tinha 17 anos, era um sonho distante imaginá-la na Globo: "Me diziam que só teria espaço como atriz em trabalhos muito característicos, quando precisassem de um personagem oriental. E digo oriental porque colocam japonesas, chinesas e coreanas sempre no mesmo bolo".

Yohama Eshima - Thiago Antonovas - Thiago Antonovas
A atriz Yohama Eshima
Imagem: Thiago Antonovas

Ela lembra inúmeros papéis preconceituosos que já precisou aceitar, principalmente no início da carreira, que a retratavam com uma mulher frágil, submissa, subserviente e fetichizada, amparada na figura da gueixa. "Hoje não aceitaria mais. Até mesmo porque sou brasileira também", contesta. A hiperssexualização do corpo das mulheres amarelas é muitas vezes reforçada pela lógica racista da indústria pornográfica. Sua beleza, não raro enquadrada como exótica, é outra vertente desse mesmo racismo. "O que significa quando alguém diz que tenho uma beleza exótica? Devo me sentir bem ou mal? Sou bonita e ponto. Não sou bonita exótica", pontua.

Yohama comemora o aumento de atores amarelos em filmes, séries e novelas e acredita que assim como o movimento negro, o movimento amarelo precisa ir à luta. "A gente tem que tomar essa frente porque é uma pauta muito importante. O Brasil possui a maior população japonesa fora do Japão do mundo. Não dá para fingir que não existimos mais", critica.

"Me achava andrógina"

Na escola, a atriz já percebia que seus traços não eram iguais aos das outras meninas. Com pai de ascendência japonesa e avó materna indígena da etnia Kaingang, de acordo com suas pesquisas, ela se sentia frequentemente isolada ou rotulada de CDF pelos colegas. "Me achava andrógina na adolescência, me olhava no espelho e tentava entender por que não era atraente. Demorei muito tempo para me entender feminina", revela a atriz.

Além da novela, Yohama ganhou notoriedade após se tornar mãe de Tom, 2 anos, e dividir a rotina com seus seguidores no Instagram. A atriz sempre desejou engravidar, mas havia sido diagnosticada, aos 27 anos, com insuficiência ovariana precoce, que é quando o funcionamento normal dos ovários é interrompido antes dos 40 anos.

Tom, filho da atriz Yohama Eshima - Arquivo Pessoal - Arquivo Pessoal
Tom, filho da atriz Yohama Eshima
Imagem: Arquivo Pessoal

Quando o médico disse que não poderia engravidar, ela não acatou a sentença. "Não era ele quem iria me dizer o que eu não posso fazer", conta. Yohama se lembrou do amigo do tarô e resgatou a força de suas palavras. Passou a repetir o mantra "creio no incrível, vejo o invisível e recebo o impossível", em suas orações budistas, melhorou sua alimentação, passou a praticar exercícios e a fazer uma série de terapias alternativas. Depois de uma performance feita em casa, em dezembro de 2019, engravidou.

Seu filho, fruto do casamento com o diretor e produtor de cinema Flávio Ramos Tambellini, nasceu em setembro de 2020, com esclerose tuberosa, uma mutação genética rara que provoca crescimento de tumores benignos em diversos órgãos do corpo. No caso de Tom, ele não consegue se sentar sozinho e tem crises convulsivas diárias —aliviadas com o uso de canabidiol e dieta cetogênica.

"Foi muito difícil admitir o luto da criança que eu esperava da criança que nasceu. A gente cria expectativas, independentemente do bebê ter deficiência ou não", desabafa. O primeiro passo depois da descoberta da doença, quando estava grávida de sete meses, foi estudar sobre capacitismo. Um novo mundo se abriu e ela então descobriu como estava desinformada em relação ao debate.

Yohama Eshima com o filho Tom - Arquivo Pessoal - Arquivo Pessoal
Yohama Eshima com o filho Tom
Imagem: Arquivo Pessoal

Para a atriz, a diferença deve ser aceita e as pessoas com deficiência devem ser acolhidas e não excluídas da sociedade. Essa é a luta que mais a mobiliza. "Meu filho vai falar e se expressar da forma e no tempo dele. Gostaria que ele tivesse essa mutação genética? Não. Mas gostaria que ele fosse diferente do que é? Também não", avalia. No início, ao ver Tom convulsionar cerca de dez vezes ao dia, Yohama chorava. Hoje, consegue manter a calma de quem sabe que vai passar: "Ganhei um olhar de resiliência, de amor e de dedicação. O Tom me transformou numa mulher muito mais forte".

Os dois primeiros anos de vida do Tom ela passou cuidando exclusivamente dele, e foi se distanciando do universo da atuação. Em plena pandemia, imersa no puerpério, exausta e debilitada emocional e fisicamente, além de cumprir uma agenda de terapia, fisioterapia e hidroterapia do filho, ela conta que não conseguia mais se enxergar atriz, porque não conseguia nem mesmo se enxergar mulher. "Minha vida só tinha uma função, que era cuidar da minha criança", desabafa.

O que a salvou foi sua rede de apoio. Ela recorda com carinho de uma amiga que a fez lembrar de quanta coisa já havia feito como atriz quando confessou que estava pensando em desistir da profissão, e de outra, que a presenteou com sessões de mentoria de carreira, ajudando a organizar metas diárias, de práticas de autocuidado a retomada de seus contatos de trabalho. Foi desta forma que surgiu o teste com o Mauro Mendonça Filho, diretor artístico da novela —e tudo tem voltado aos eixos.

Yohama com o marido, o produtor de cinema Flávio Tambellin e o filho Tom - Arquivo Pessoal - Arquivo Pessoal
Yohama com o filho e o marido, o produtor de cinema Flávio Tambellini
Imagem: Arquivo Pessoal

Depois de tantas mudanças e descobertas, não só Yohama retomou as rédeas de sua vida, como até mesmo o Tom tem evoluído. "Se estamos realizadas, nossos filhos sentem. Tudo em casa melhorou, a gente movimenta a energia", acredita a atriz, que carrega um pingente de quartzo rosa no pescoço trazido da viagem à Chapada dos Veadeiros, em Goiás.