Peitou a ditadura, mostrou seios, fez o 'L': Gal deixa legado de coragem
A cantora Gal Costa, que morreu nesta quarta-feira (9), era figura feminina forte e rejeitava rótulos como o de feminista. Mas a baiana Maria da Graça Costa Penna Burgos fez uma revolução nos costumes com sua música e postura. E deixou um legado para as mulheres ao bater de frente com o moralismo.
"Acho que essas mulheres que se destacam, que se empoderam, já fazem naturalmente um trabalho feminista, sem intenção de ser feminista. Não sou feminista, mas acho que o futuro será das mulheres. No futuro, a gente vai dominar", disse em uma entrevista ao "Estado de S. Paulo" em 2017.
E foi o que ela fez com ousadia nas letras de suas músicas e em seu comportamento, desafiando costumes e papéis impostos a mulheres.
Gal estreou na música já ao lado de grandes cantores, como Caetano Veloso, Gilberto Gil, Maria Bethânia, Tom Zé e outros, no espetáculo "Nós, Por Exemplo" em 22 de agosto de 1964. Com Caetano Veloso, Gilberto Gil e Maria Bethânia, formou o quarteto dos Doces Bárbaros e participou do álbum "Tropicália ou Panis et Circensis", trabalho-chave para entender o movimento tropicalista.
Gal enfrentou o machismo e moralismo nas pequenas coisas como exibir os seios em um show, usar biquínis muito pequenos ou se apresentar com a barriga de fora. Mas também teve grandes confrontos, por exemplo, com a censura na ditadura militar. Relembre.
Enfrentou censura por ferir moral e bons costumes
Em 1973, Gal lançou o álbum "Índia", que na época foi censurado pela ditadura militar. Na foto, havia um close nela de tanga vermelha, vestindo colares de contas e tirando a saia. A solução da gravadora para continuar vendendo o disco foi envolvê-lo em um plástico azul — o que aumentou ainda mais a curiosidade do público e a procura pelo álbum. Na contracapa, a cantora aparecia com os seios de fora e vestida de indígena.
Apenas em 2015, o disco foi lançado com a foto completamente exposta. Na época, ela comemorou em seu Instagram que a imagem voltava em uma reedição especial do álbum "para nosso deleite, incluindo o meu", escreveu a cantora na rede.
A música "Vaca Profana", escrita por Caetano Veloso a pedido de Gal Costa para o álbum "Profana", também foi censurada por ferir a moral e os bons costumes, de acordo com a Divisão de Censura de Diversões Públicas. A letra crítica dogmas sobre comportamentos de mulheres, "vacas profanas de divinas tetas".
Enfrentou comentários moralistas ao exibir seios
Em 1994, ela foi o centro de outra polêmica ao expor os seios durante um show. Gal havia convidado o diretor de teatro Gerald Thomas para dirigir o espetáculo "O Sorriso do Gato de Alice", que estreou no Teatro Imperator, zona norte do Rio de Janeiro.
Ela entrou descalça no palco vestindo uma roupa escura inspirada nos uniformes de operárias de fábricas, pisando por cima de um telhado cenográfico como uma gata. Ao cantar a música "Brasil, mostra a tua cara / Quero ver quem paga pra gente ficar assim", ela abriu a blusa e mostrou os seios. No dia seguinte, os jornais estamparam na primeira página a foto da cantora com seios à mostra.
Gal recebeu diversas críticas e piadas e comentários moralistas e indignados. Ela se manifestou sobre o tema na época em uma entrevista ao programa "Roda Viva", da TV Cultura. "Não me arrependi em nenhum momento de ter feito o espetáculo com Gerald Thomas. Era o que eu queria. Acho que eu tenho muita honra e muito orgulho de ter feito esse espetáculo", disse.
"Eu fazia o espetáculo com o maior prazer, não me sentia oprimida, como a imprensa falou, que o Gerald me oprimiu, não me oprimiu, porque eu fiz aquilo que eu quis. Eu só faço aquilo que eu quero. E eu me sentia bem e acho que faz parte da minha história. Quem conhece a minha história sabe que eu sou ousada e que eu faço essas coisas. Eu sei que elas têm um preço, mas eu encaro."
Falou abertamente de sexo e outros temas tabus
Apesar de ser reservada com relação a sua própria sexualidade — em entrevista a Universa em 2018, a cantora se recusou a responder ao ser questionada sobre sua orientação sexual —, Gal falava de temas considerados tabus com naturalidade. Em 2019 no programa "Altas Horas", da TV Globo, ela falou sobre orgasmo feminino.
"Aos 40 anos, não tinha orgasmo. Contratei uma coach e mudei minha vida", revelou. "Você explica didaticamente aos homens que as mulheres têm a possibilidade de ter orgasmo de várias maneiras? Nem todo homem sabe disso", opinou ela, reforçando ainda que a timidez entre os casais pode ser um obstáculo. "Às vezes pela própria timidez e falta de conversa entre os dois, isso não acontece."
Chamou Bolsonaro de homofóbico
Gal Costa sempre foi uma artista politicamente ativa — mas não com uma militância formal. Durante a ditadura militar, denunciou o período autoritário com seus comportamentos, suas músicas, shows e entrevistas.
Mais recentemente, se posicionou claramente com relação à política brasileira. Na entrevista que concedeu a Universa em 2018, Gal Costa criticou o atual presidente Jair Bolsonaro (PL), a quem ela chamou de homofóbico. "Ele é racista, homofóbico, grita com mulher. Quem respeita os outros não quer um presidente assim. Ter ódio por alguém ser travesti é muito estranho. Talvez esse ódio seja uma atração."
No festival Coala, em São Paulo, um de seus últimos shows e no período pré-eleições, a cantora clamou ao público: "Daqui a 15 dias a gente escolhe nosso presidente. Vamos votar direitinho, vamos votar com sabedoria e com inteligência. Vamos votar sem ódio e vamos votar com amor. Vamos lá!", disse Gal fazendo a letra "L" com as mãos, em referência ao então candidato Lula, que foi eleito no último dia 30. Ela publicou o vídeo do momento em suas redes sociais.
Foi a voz do 'desbunde'
Em 12 de outubro de 1971, no Teatro Tereza Rachel, em Copacabana, Gal se tornou a maior expressão vocal do desbunde, vertente da contracultura brasileira. Com cropped brilhoso e batom vermelho, ela, que tinha 26 anos, estreou o show "Fa-Tal" — um mito na cultura brasileira no auge da repressão militar.
"É um show que tem muita ligação com o momento que a gente vivia, com a partida dos tropicalistas, de Caetano e Gil. Tem muita referência a eles. E eu estava vivendo uma carreira que a censura não me censurou. Quer dizer, consegui fazer um trabalho onde absorvi muito da cultura tropicalista daquele momento", disse em entrevista "Folha de S. Paulo" em 2018.
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