Sarah Oliveira: 'Gal contribuiu para a libertação feminina com corpo livre'
Esta manhã foi das mais tristes da minha vida e de muita gente que vai ler este texto. Gal foi embora de supressa. Assim, do nada. De repente, uma ligação, e todos entramos em uma fenda no tempo e no espaço. Que loucura.
Eu havia trocado mensagens com ela no domingo, depois do show da Björk [no festival Primavera Sound]. Cheguei inebriada por aquele acontecimento e me lembrei da Gal. Mandei um carinho para ela na madrugada, que me respondeu prontamente. Conto isso porque acho bonito saberem que uma cantora tão fundamento como a Gal, era tão ligada. Ela era cheia de tesão pela vida, pelas novidades.
Todas as entrevistas que me deu, seja na MTV, no GNT ou recentemente, quando gravou meu programa "Minha Canção" [transmitido na Rádio Eldorado], ela esbanjava este vigor.
No dia da gravação do "Minha Canção", chegou animadíssima porque havia recebido, naquela manhã, uma ligação da Bethânia dizendo que amou a música "Minha Mãe", que Jorge Mautner compôs para as duas gravarem juntas, de maneira inédita, depois de tantos anos. Está em seu disco "A Pele do Futuro".
E no palco, então, Gal vinha sendo a queridinha dos festivais, um público cada vez mais jovem a acompanhava. Gravou canções inéditas e vinha cantando com gente de várias idades e vertentes. Misturou Caetano, Bethânia, Gil e Mautner com Marília Mendonça, Céu, Emicida, Erasmo, Tim Bernardes, Nando Reis, Caetano, Malu Magalhães, Rubel. Aqui, uma menção honrosa e um agradecimento público ao meu querido amigo Marcus Preto, que foi essencial para a carreira dela nos últimos anos, fazendo esta ponte entre a Gal e todo mundo que a amava e admirava. Isso a alimentou demais.
Gal ousou ser libertária na ditadura. No Rio, ela encontrava a turma dela todos os dias, em um duto que desembocava no fundo do mar, em Ipanema, e tinham dunas de areia. O lugar acabou levando o apelido de "dunas da Gal". Todo mundo ia lá para vê-la e "virou um reduto dos hippies que pensavam como nós. "Eu vivia na praia e ficava criando com Wally [Salomão] e Caetano", me contou.
Foi lá que Wally Salomão fez "Mal Secreto" para ela. "Quando você vai embora, movo meu rosto do espelho, minha alma chora." Esta canção está no icônico "Fatal".
Aliás, "Fatal" é um disco que eu ouço dia sim, dia não. Eu talvez não tenha mencionado isso antes, mas a primeira vez que ouvi "Fatal" foi quando tive vontade de trabalhar com música. Entender a importância daquele disco para a cultura brasileira. Foi quando entendi João Gilberto dizendo que Gal era a melhor cantora do Brasil.
A contribuição dela para a libertação feminina foi enorme. A imagem, no seu caso, sempre foi muito importante O que ela vestia, a naturalidade como mostrava o seu corpo, nós mulheres sempre nos identificamos com isso. E isso foi passando de geração a geração. "Minha história é rica neste aspecto, sinto que sou uma cantora emblemática para as mulheres, neste sentido', ela me disse.
São muitos momentos assim, mas acho que a capa de "Índia" diz tudo. A ditadura censurou a capa, com Gal de tanga cobrindo sua vagina e deixando virilha e coxa à mostra, em foco. O disco era vendido num invólucro preto.
Conversando sobre "Índia", ela confessou sorrindo: "Outro dia, eu tava ouvindo este disco encantada comigo mesma, pensava: 'Como eu balbuciava lindamente daquela maneira. Eu sempre cantei de maneira rasgada, e em "Índia", eu cantei delicadamente. Como consegui?"
Neste disco, Caetano escreveu para ela "Da Maior Importância". "Rolava um tesão louco entre mim e Caetano, era um amor platônico, mas nunca chegamos às vias de fato. Até hoje não entendo por que não transamos." Quando gravei o programa com Caetano, mostrei este depoimento a ele. Quando ouviu isso, ruborizou como nunca tinha visto e disse: "Eu não sei responder, Gal", e gargalhou.
Outro dos vários presentes de Caetano para Gal foi o álbum "Recanto". Quando ela lançou este disco, eu estava grávida de minha primeira filha, Chloe. Ela me deu a honra de gravar meu programa "Viva Voz" e também meu documentário "Na Trilha Da Canção" (disponível no GloboPlay e no no YouTube).
Eu lembro quando ouvi "Recanto Escuro" e a melodia daquela canção me soava doída. Não conseguia parar de chorar, achava que era sensibilidade exacerbada da gestação, mas Gal me confidenciou: "Eu também chorei de soluçar quando ouvi esta letra. Ninguém sabe, mas é uma autobiografia minha e dele que se entrelaçava. Eu sou uma intérprete muito importante para o repertório do Caetano, desde os anos 60. É uma canção profunda."
Ela canta chorando: "Coisas sagradas permanecem". "Espírito é o que enfim resulta."
Ela também relembrou quando convidou Herbert Vianna para participar de seu "Acústico MTV". Isso foi um pouco antes do acidente dele e ela se emocionou lembrando da emoção do Herbert de estar ali ao seu lado. Ficou muito surpresa por isso. E soltou uma frase que eu carrego até hoje: "Um artista nunca tem a dimensão do que ele representa."
E finalizou: "Quando você se arrisca e transgride é muito sofrimento, mas se é verdadeiro, você acaba tendo liberdade para fazer o que quiser até o final da sua vida. É uma sensação de dever cumprido, sabe?"
Sabemos, Gal.
Como ela canta em "Com medo, Com Pedro" —que Gil escreveu pra ela:
"Deus me livre de ter medo agora
Depois que eu já me joguei no mundo
Deus me livre de ter medo agora
Depois que eu já pus os pés no fundo."
Obrigada demais por tudo, vaca profana --fatal-- eterna.
Sarah Oliveira é comunicadora e idealizadora de projetos audiovisuais.
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