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'Gal enfrentou própria timidez', diz diretora de documentário sobre cantora

Dandara Ferreira, diretora do documentário "O Nome dela é Gal", com a cantora - Arquivo pessoal
Dandara Ferreira, diretora do documentário "O Nome dela é Gal", com a cantora Imagem: Arquivo pessoal

Dandara Ferreira

Colaboração para Universa, em São Paulo

10/11/2022 16h45

Quando Universa me pediu para escrever esse texto pensei muito em como resumir Gal, porque ela é amor, alegria, paixão, potência, beleza e feminino. Gal é canto e é mistério também. Gal é presença.

Perdemos a maior cantora do Brasil. Perdi um amor, uma amiga, uma grande referência.

É ainda difícil assimilar essa informação porque algumas das minhas mais felizes e tristes lembranças da vida foram embaladas pela voz de Gal, que antes de se tornar uma amiga e a grande protagonista de parte importante da minha vida profissional, já era uma grande inspiração.

Em casa, ela fazia parte da trilha sonora desde a minha infância. Quando meu pai se separou da minha mãe, ele cantarolava muito uma música dela, "Hotel das Estrelas". "Rio e também posso chorar/ Oh, e também posso chorar", diz um trecho da música.

Fui crescendo e suas músicas seguiam fazendo parte da minha vida. Os romances, as festas com os amigos, os momentos de tristeza. Gal estava sempre ali sempre trazendo alguma coisa importante. Por isso, conhecer Gal pessoalmente foi também um encantamento, um grande acontecimento.

"Pedi o mesmo prato vegetariano"

Nossa aproximação começou quando eu tinha cerca de 24 anos. Conheci Gal por intermédio de Caetano Veloso, seu parceiro, seu grande amigo, num jantar em São Paulo. Eles estavam comemorando o disco "Recanto". Eu estava maravilhada por estar com ela, embora não tenha me dado muita bola. Tentei de toda forma me aproximar, sentei na mesa na frente dela, pedi o mesmo prato vegetariano, mas nada adiantou. Ela estava mais focada em ouvir Caetano (claro!).

Dandara Ferreira, que dirigiu o documentário "Meu Nome É Gal" - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Dandara Ferreira com Gal Costa
Imagem: Arquivo pessoal

Nossa amizade foi se desenvolvendo com o tempo. E acho que o documentário que dirigi "O Nome Dela é Gal" (HBO) contribuí para isso. Criamos ali uma relação de amizade e confiança. O desejo de documentar sobre a história de Gal era antigo. Achava um absurdo não ter nada documentado sobre uma das mais belas vozes da música brasileira. Ela por um tempo se mostrou reticente e arquivei o projeto. Talvez achasse que ainda não era hora.

Só dois anos depois, quando ela completou 50 de carreira e 60 anos de idade, ela me disse que toparia que eu fizesse o documentário. Eu quase nem acreditei que estava ouvindo isso. Discutimos o projeto do documentário sempre com muito diálogo e respeito aos seus próprios limites.

Gal sempre foi uma personalidade pública, uma mulher à frente do seu tempo, que inspirou muitas outras mulheres, mas Maria das Graças Penna Burgos sempre preservou como pode a sua privacidade.

Em 2017, ano do lançamento do documentário, em uma conversa comigo e Wilma em sua casa, ela me instigou a fazer um filme de ficção sobre a vida dela. Brincou que tinha filmes de várias cantoras, citou o longa sobre Edith Piaf, que ela gostava muito e fez uns comentários sobre a atriz.

Eu sabia que fazer esse filme era um desafio era enorme. Deu medo porque, além de Gal, teriam que ser retratados outros grandes ídolos: Gil, Caetano e Bethânia. Imaginava o tempo inteiro eles na sala de cinema assistindo e a adrenalina disparava. Quando desenvolvi o projeto e precisava pensar em quem a interpretasse, me veio na cabeça a Sophie Charlotte e ela topou.

Durante o processo do filme, olhava para Sophie e via Gal, mesmo Sophie não sendo tão parecida fisicamente com ela. Cheguei, inclusive, a me emocionar num dia de filmagem em que Sophie se espreguiçava numa rede. Era Gal quem estava ali e também em várias outras partes da feitura do filme.

Dandara Ferreira, que dirigiu o documentário "Meu Nome É Gal" - Arquivo Pessoal - Arquivo Pessoal
"Não existe ausência ao falar de Gal. Ela estará sempre presente entre nós", diz a diretora Dandara Ferreira
Imagem: Arquivo Pessoal

Ligava sempre para compartilhar coisas, tirar dúvidas, mostrar o que tínhamos descoberto na pesquisa, perguntar do figurino, mas a memória de Gal era péssima (rs). E eu nem me importava, eu queria mesmo era viver aquele momento tão importante para mim junto com ela.

Esses quase dez anos documentando Gal me fizeram admirá-la ainda mais. Estamos falando dessa mulher corajosa, que enfrentou a própria timidez, os preconceitos e até mesmo a ditadura para bancar a sua arte, a sua música. Uma mulher que quebrou barreiras e que se tornou uma referência para nós, mulheres de diversas gerações. Uma artista combativa, que até hoje se mantinha atuante na luta pela cultura e por um Brasil melhor.

A última vez que nos vimos, embora tenha sido por FaceTime, eu estava coincidentemente com Caetano em um jantar em Brasília. Ficamos conversando nós três e fiquei ecoando essa ligação por dias. Relembrei na ocasião que Caetano havia nos apresentado e agradeci a ele por isso.

Nos despedimos com um "te amo".

Ontem, na hora que soube da morte da Gal, eu estava no telefone com Sophie. Não nos falávamos por telefone fazia tempo. A ligação caiu e eu recebi a notícia. Simbólico.

Sei que morte é ausência, mas não existe ausência ao falar de Gal. Gal estará sempre presente entre nós.

Te amo, Galzinha. Obrigada por tanto.