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Marisa Orth vive mulher alcoólatra no teatro: 'Gosto de parar de beber'

Marisa Orth estrela a peça "Bárbara", baseado na história de depedência química da jornalista Barbara Gancia - Bob Wolfenson/Divulgação
Marisa Orth estrela a peça "Bárbara", baseado na história de depedência química da jornalista Barbara Gancia Imagem: Bob Wolfenson/Divulgação

Alan de Faria

Colaboração para Universa, em São Paulo

12/11/2022 04h00

Quando Marisa Orth, 59, surge no palco do teatro Renaissance, em São Paulo, para apresentar o monólogo "Bárbara", o público que está lá para vê-la parece abrir um sorriso, todos ao mesmo tempo. Impossível não associá-la ao humor: foram inúmeras as personagens cômicas que interpretou ao longo de seus 40 anos de carreira, como a inesquecível Magda, de "Sai de Baixo", da Globo. Falando em um microfone localizado no centro do cenário, a atriz conversa brevemente com a plateia e faz algumas piadas sobre estar sozinha em cena.

Mas o que poderia ser um stand-up comedy logo vira uma tragicomédia sobre uma mulher que, após 30 anos de muita bebedeira, a ponto de acordar em cima de uma poça de sangue sem saber como foi parar naquela situação, consegue se livrar da dependência.

É a segunda temporada da peça na capital paulista —a estreia foi em outubro passado—, e fica em cartaz até dezembro. Com dramaturgia de Michelle Ferreira e direção de Bruno Guida, é baseada no livro "A Saideira: Uma Dose de Esperança Depois de Anos Lutando Contra a Dependência" (ed. Planeta), da jornalista Barbara Gancia.

Na obra, ela narra desde situações que colocaram sua vida em risco, como os vários acidentes de carro que sofreu por dirigir alcoolizada, até momentos que podem causar riso —pelo menos para quem vê de fora—, como quando pediu a uma cabeleireira que bebia com ela que cortasse seus cabelos. O resultado, como era de se esperar, não foi dos melhores.

As reações de quem assiste à peça são igualmente dúbias, tal qual a história verídica. "Tenho ouvido histórias tristes de quem vem assistir à peça e revela que tem alguém na família com dependência de álcool. Por outro lado, há quem chegue até mim fazendo festa, dizendo: 'Estou há cinco anos sem beber, adorei o espetáculo, tem que passar essa mensagem para frente'", conta Marisa, em entrevista à Universa, revelando que, como no livro, "Bárbara" tem um final feliz.

Sobre a sua relação com a bebida, afirma que seu próprio organismo a faz frear qualquer tentativa de exagero. "Mais do que gostar de beber, gosto de parar de beber", diz. "O meu estômago fala mais alto do que a minha cabeça."

Marisa na peça "Barbara" - Marcos Mesquita/Divulgação - Marcos Mesquita/Divulgação
Marisa na peça "Barbara", em cartaz no Teatro Renaissance, em São Paulo
Imagem: Marcos Mesquita/Divulgação

'Isso não é nada engraçado', disse Gancia a Marisa durante ensaio

Gancia não acompanhou todo o processo da montagem, mas esteve em um dos ensaios finais, antes da estreia. "Foi a prova dos nove. No dia, fiquei bastante insegura, pois estou interpretando uma personagem que existe, que está viva. Mas, foi ótimo, ela sugeriu pequenas correções. Pediu que usássemos a palavra dependência e não vício, termo que carrega uma intenção maléfica", diz Marisa, que, por este trabalho, foi eleita a melhor atriz de uma peça teatral no Prêmio Bibi Ferreira 2022. Trata-se do primeiro prêmio de Marisa em um papel dramático.

A jornalista também chamou a atenção para uma cena em que Marisa, na pele da personagem, dizia, rindo de si mesma, que estava vendo bichos na parede, após um porre homérico. "A Barbara Gancia comentou: 'Isso não é nada engraçado. Acontece quando o grau de dependência já está bastante severo'."

Apresentações fechadas para grupos de dependentes químicos

Para compor a personagem no monólogo, o primeiro de sua carreira, Marisa não visitou reuniões de narcóticos ou alcoólicos anônimos para colher depoimentos de dependentes, por exemplo. Ela diz que se apoiou no testemunho em livro de Barbara Gancia e valeu-se do conhecimento adquirido na psicologia, curso no qual também se formou.

"Você sabia que cerca da maioria das doenças mentais está ligada ao álcool? E quanto aos transtornos sociais provocados por ele? Bom, nem é preciso estudar tanto para entender isso. Todo final de semana há notícias de acidentes de trânsito, com motoristas embriagados que batem seus carros em postes, ou de violência contra a mulher por homens que chegam em casa alterados depois da ingestão de álcool".

marisa orth - Marcos Mesquita/Divulgação - Marcos Mesquita/Divulgação
"Tenho ouvido histórias tristes de quem vem assistir à peça", diz a atriz
Imagem: Marcos Mesquita/Divulgação

Para ela, que tem feito apresentações de "Bárbara" para grupos de dependentes químicos em horários alternativos, a ingestão de bebidas alcóolicas deve ser tratada como saúde pública. Ela também apoia campanhas de conscientização sobre o assunto.

"É assustador viver clima de censura contra artistas"

Comemorando 40 anos de carreira, Marisa Orth ainda é lembrada por seus inúmeros papéis de sucesso da televisão, a começar pela Nicinha em "Rainha da Sucata", de 1990, seu grande papel de estreia, passando por personagens cômicas em "TV Pirata", também da década de 1990, e pela inesquecível Magda de "Sai de Baixo", nas telas de 1996 a 2002.

Mas Marisa é uma atriz de teatro. É raro não vê-la no elenco de alguma produção em cartaz, mesmo em meio a gravações de trabalhos para a televisão.

Assim, confessa que ficou bastante assustada diante de críticas de parte da sociedade, que se intensificaram nos últimos anos, acusando ela e seus colegas de ofício de "mamarem nas tetas do Estado", como "se fôssemos todos milionários". "Por outro lado, isso tudo me mostrou o quanto somos importantes, pois houve, sim, tentativas de nos silenciarem".

"Me tornei adulta nos anos 1980 e só fui votar pela primeira vez aos 24, 25 anos. Desde então, pensava que a democracia no Brasil só seria aperfeiçoada. Na faculdade, lia os textos de dramaturgos como Bertolt Brecht e Eugène Ionesco sobre fascismo e pensava: 'Nossa, isso parece coisa de museu, do passado'. Logo, foi bem assustador vivenciar esse clima de censura que vinha sendo propagado."

Paralelamente aos seus trabalhos artísticos, Marisa toca o projeto Escola Spectaculu. Fundada há 23 anos por ela e pelo artista visual Gringo Cardia, a instituição oferece cursos técnicos, como fotografia, iluminação cênica e edição a jovens entre 17 e 21 anos de escolas públicas das periferias do Rio de Janeiro. Trata-se, como ela mesma descreve, de uma ferramenta para combatar à miséria. "É preciso reconhecer que existe pobreza no Brasil para acabar com ela."