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'Cantei pra ele ir': a dor de perder um bebê com Síndrome de Patau

Maria Angélica, grávida de Davi, com o marido, Rafael - Arquivo pessoal
Maria Angélica, grávida de Davi, com o marido, Rafael Imagem: Arquivo pessoal

Maria Angélica Alonso, em depoimento a Franceli Stefani

Colaboração para Universa, em Porto Alegre

12/11/2022 04h00

O casal de músicos cariocas Maria Angélica Alonso e Rafael Haranaka emocionou a internet ao transformar o amor em canção. Eles divulgaram um vídeo interpretando "Reencontro" na página do duo musical chamado Amelie, que mantêm juntos. Com quase 64 mil visualizações, Maria aparece com Davi nos braços, enquanto Rafael toca violão. Era a despedida do filho, acometido pela Síndrome de Patau, que morreu seis dias após o nascimento.

A mãe, de 38 anos, conta que o pequeno nasceu prematuro no dia 19 de outubro de 2022 no Rio de Janeiro. O seu quadro foi piorando aos poucos. No dia 24 de outubro morreu cercado de cuidado, carinho e amor. Ela, que também é médica, explica que a doença é grave e provoca diversas malformações e disfunções de vários sistemas, entre eles os neurológico, mental e cardíaco, o que leva os bebês acometidos a terem uma expectativa de vida muito baixa. A maioria deles sobrevive por dias ou semanas.

"Ter filhos sempre fez parte dos nossos planos, mas a vontade mesmo bateu forte no ano passado. Engravidei em outubro de 2021 e foi um momento incrível pra nós. Ficamos em êxtase e já planejando e imaginando tantas coisas, mas ao fazer um ultrassom de rotina, com 11 semanas, descobrimos que não havia mais batimentos fetais. Foi o primeiro grande baque e um momento de muito sofrimento.

Três meses depois já estávamos prontos para tentar novamente e engravidei em março de 2022. Era uma felicidade imensa e o coração estava aliviado por ter conseguido engravidar bem rápido novamente. Porém, em ultrassom de rotina nosso mundo desabou mais uma vez. A transluscência nucal do Davi estava alterada e isso poderia significar alguma síndrome. Me orientaram a fazer um exame chamado NIPT e uma amniocentese, que fechou o diagnóstico de Trissomia do cromossomo 13, a Síndrome de Patau.

Como médica foi especialmente mais difícil, pois eu lia os artigos e já vislumbrava todos os piores desfechos possíveis e o processo doloroso pelo qual nosso bebê acabaria passando ao nascer. Meu obstetra, o doutor Paulo Correa, foi extremamente atencioso e cuidadoso durante todo o processo e também ficou muito sensibilizado e tocado com a nossa história.

Nas conversas com muitos profissionais da área, nas leituras dos artigos e blogs sobre o assunto, sempre me deparava com o termo 'incompatível com a vida'. Um termo muito pesado e que nos tirava qualquer esperança. Só que o Davi estava lá. Vivo, muito vivo. Coraçãozinho batendo a todo vapor, muitos chutes, soluços, mãozinhas no rosto e pernas pra cima.

'Todos os dias eu acordava e pensava: estou grávida'

Maria - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Maria Angélica Alonso: 'As chances de uma perda gestacional eram enormes, mas decidimos viver um dia de cada vez'
Imagem: Arquivo pessoal

As chances de uma perda gestacional eram enormes, mas decidimos viver um dia de cada vez, sem projeções e planos, tentando não criar expectativas, muito embora isso seja difícil quando se trata de uma gestação.

Todos os dias eu acordava e pensava: estou grávida. Davi está aqui, e assim eu seguia ao longo dos dias, pensando que eu tinha ele ali comigo, que ele estava bem, eu ainda estava grávida e seguia tomando meus cuidados com alimentação, exercícios físicos, meditação, vitaminas, como seria em uma gravidez considerada 'normal'.

O Rafa estava o tempo todo ao nosso lado, trazendo o ar quando me faltava e muitos sorrisos quando eu chorava. Nunca rejeitou o Davi e, muito pelo contrário, sempre tratou o seu filho com o maior amor do mundo, fosse do jeitinho que ele viesse a ser.

Quando cheguei nas 33 semanas iniciei um quadro de hipertensão gestacional e o Davi parou de crescer. Fiquei ansiosa pois sua condição já era grave o bastante e a prematuridade acrescentaria muito mais riscos à sua vida. Uma semana depois, minha pressão aumentou um pouco mais e ele já estava entrando em sofrimento fetal e baixo peso. Foi necessário interromper a gestação nesse momento, para que ele tivesse alguma chance aqui fora.

'Eu precisava conhecê-lo'

Marcamos a cesariana para o dia seguinte à última ultrassonografia, pois a situação dele poderia se agravar ainda mais. Já estava quase sem esperança de ter ele vivo nos meus braços pois sabia de todo o risco que ele corria. Ao longo da gestação já havíamos entrado em contato com a médica Fernanda Lobo Rascão, que é pediatra paliativista, para que garantisse os cuidados, o conforto dele acima de tudo, e para que, quando chegasse o momento, ele fizesse a passagem de uma forma leve, sem sofrimento e, de preferência, na nossa presença.

Eu precisava conhecer ele. Pedia muito para que aguentasse firme, pois a gente precisava se conhecer ou se reconhecer, né? Foi então que a doutora Fernanda teve a ideia de tocarmos para ele a nossa música "Reencontro". Fizemos a composição em 2018. Ela fala sobre um reencontro ao longo das vidas, sobre como duas pessoas se reconhecem em outro corpo, outra vida. A música era para o Davi, só que a gente ainda não sabia.

Música, amor e colo

No terceiro dia de vida ele começou a piorar e ficamos na expectativa de quanto tempo ele aguentaria. A cada entrada no CTI meu coração disparava e minha garganta dava um nó apertado porque não sabia como o encontraria. Foi então que, no quinto dia de vida, ele piorou ainda mais e sua pediatra deu a ideia de tocarmos pra ele, como uma forma de despedida, afago, amor e colo. Perguntamos como seria para conseguir tocar pra ele e ela disse que daria um jeito porque "o Davi precisa ouvir essas músicas".

Com aval da equipe do hospital, entramos com o coração aos saltos, mãos trêmulas sem saber se conseguiríamos tocar e cantar numa situação como essa, cientes de que ele poderia fazer a passagem dele ali, no nosso colo. Algo nos iluminou, começamos a tocar e uma onda indescritível de paz e serenidade invadiu nossos corpos, nossas almas.

Maria - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Maria Angélica e Rafael com o filho recém-nascido
Imagem: Arquivo pessoal

Nunca havia sentido nada parecido com aquele momento. Davi ficou calmo e com os sinais vitais estáveis a todo momento, ainda me olhou cantando. Ele vira o rostinho bem de leve e o cantinho dos olhos, como quem diz, "estou gostando disso, não parem". Tocamos ainda a música "Maternal", também de nossa autoria, que foi feita muito antes de o Davi nascer e que parecia também já ser sobre a sua chegada.

Toda a tristeza dramática daquela situação, que era para ser muito pesada e avassaladora, deu lugar à paz, ao amor em sua forma mais pura e a uma sensação de entorpecimento que nunca havia experimentado antes. Um dia depois, no seu sexto dia de vida, ele fez sua passagem, com seu olharzinho sereno e, emanando sua energia tão boa, tão pura, foi para outro plano.

A dor como companheira

Dias depois uma dor lancinante era a minha companheira diária. Me sentia extremamente triste, angustiada, em sofrimento profundo por saudade dele, vontade de ter ele mais um pouquinho, ver de novo, pegar ele no colo só mais uma vez. Saudade do cheiro, do toque da pele dele que parecia um pêssego, de ver seus movimentos, seus olhinhos (puxados, iguais aos do papai) e suas mãozinhas com seus dedinhos extras que eram lindos.

Em um momento de muita angústia eu resolvi postar nosso vídeo que, até então, iria ficar só para nós dois nos relembrarmos daquele momento, daquele instante. Compartilhar, poder falar do Davi abertamente, mostrá-lo para todos, ler relatos lindos e emocionantes de mães e pais que também passaram por situações parecidas, começou a encher meu coração de alegria. A sensação era de que ele estava vivo novamente, sabe?

Esse acolhimento está me ajudando a dar sentido e elaborar melhor o meu luto. Não imaginava o quão longe o vídeo iria e a cada mensagem de carinho e apoio que recebo, fico muito feliz por ter divulgado. Sinto que o Davi está tocando as pessoas e espalhando a coragem, a força e o amor que ele teve nos seus poucos dias por aqui. E como ele teve amor. Foi e está sendo a maior transformação das nossas vidas. Incrível pensar que ele, com um diagnóstico 'incompatível com a vida', tenha nos doado tanta vida, em tão pouco tempo. E o que fica é eterno, compatível e ilimitado.

O Davi me mostrou o que é o amor materno, que até então desconhecia. Difícil definir a maternidade porque ela carece de um termo à altura, mas acredito que ser mãe é como uma grande explosão. Tudo passa a ser mais intenso, brilhante, luminoso, caloroso, impactante e, em alguns casos, avassalador e destruidor.

Nosso desejo em sermos mãe e pai de novo só aumentou. Queremos muito sentir novamente essa explosão de amor que um filho nos traz. No entanto, primeiro estamos juntando nossos caquinhos, nos curando juntos de todo esse processo que foi e ainda está sendo muito intenso e doloroso.

Às mães de anjos eu desejo que encontrem novamente a alegria de viver pois, em algum lugar, nossos filhos nos acompanham e acho que eles gostariam de nos ver felizes e sorrindo. A saudade é o amor gigante que ficou aqui, presente a todo momento. Mas eu acredito que a vida não termina com a morte física e que teremos ainda nossos reencontros pelo caminho."

*Maria Angélica Alonso, 38 anos, é médica, cantora e compositora e vive no Rio de Janeiro (RJ)