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'Vamos demarcar terra com nosso sangue': quem é a indígena premiada nos EUA

A líder indígena Valdelice Veron - Divulgação
A líder indígena Valdelice Veron Imagem: Divulgação

Rodrigo Simon*

Colaboração para Universa, de São Paulo

17/11/2022 04h00

Aplausos.

Diante da multidão, com o rosto pintado de vermelho, levando na cabeça o Jeguaka (cocar) e carregando na mão o Mbaraka (chocalho que representa a transmissão de sabedoria), Valdelice Veron volta 21 anos no passado e se lembra do pai, o cacique Marcos Veron.

Era 16 de outubro de 2001. Algemado e jogado na carroceria de um caminhão, depois de ter a casa incendiada em uma reintegração de posse na Terra Indígena Caarapó, em Mato Grosso do Sul, Veron previu algo que a então menina de 8 anos jamais esqueceria.

"Ele olhou no fundo dos meus olhos e disse: 'Você ainda vai fazer o papel falar onde todos os doutores vão ouvir'."

Dois anos após o prenúncio sobre o futuro da filha, em janeiro de 2003, o cacique foi sequestrado por pistoleiros na Fazenda Brasília do Sul, em Juti, em Mato Grosso do Sul, local reivindicado pelos Kaiowá como território Tekoha Takuara. Dois dias depois, foi assassinado a coronhadas.

Na ocasião, segundo denúncia do Ministério Público Federal, um grupo de 34 homens armados foi contratado para agredir e expulsar os indígenas do local.

Além do assassinato de Veron, um dos irmãos de Valdelice, Ládio, quase foi queimado vivo. Uma de suas irmãs, Geisebel, grávida de sete meses, foi arrastada pelos cabelos e espancada.

Dos 24 acusados pelo MPF, 3 foram condenados a 12 anos de prisão, mas libertados depois de cumprirem um terço da pena. Atualmente, o processo corre sob sigilo.

Apontado pelos procuradores como mentor intelectual e financeiro do crime e denunciado por homicídio duplamente qualificado, o fazendeiro Jacintho Honório da Silva Filho, dono da fazenda Brasília do Sul, morreu em 2019 sem nunca ter sido julgado.

Valdelice Veron e Hillary Clinton no prêmio - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Valdelice Veron e Hillary Clinton no prêmio
Imagem: Arquivo pessoal

É noite de quarta-feira (9) em Washington (EUA) e Valdelice realiza o que um dia lhe pareceu impossível. Uma das principais lideranças indígenas brasileiras, ela segue a profecia feita pelo pai e recebe o Prêmio Liderança Global da Vital Voices Global Partnership, organização criada pela ex-primeira-dama norte-americana Hillary Clinton para apoiar lideranças femininas em todo o mundo.

A porta-voz Guarani Kaiowá levou à capital norte-americana o que descreveu como o grito de um povo que luta pela vida.

"Nos últimos anos, no Brasil, mais de 300 indígenas foram executados, incluindo mulheres, crianças e caciques", discursou.

Mais aplausos. Valdelice foi aplaudida de pé pela plateia no suntuoso Centro John F. Kennedy para Artes Performáticas, a menos de dois quilômetros da Casa Branca.

Passados 20 anos do assassinato de seu pai, os ataques contra os Guarani Kaiowá em Mato Grosso do Sul só fizeram aumentar, especialmente durante o governo Bolsonaro. É uma escalada de violência que parece não ter fim.

Em junho deste ano, Valdelice teve que se fazer ouvir novamente, desta vez em defesa do indígena Vito Fernandes, 42 anos, morto com perfurações de arma de fogo durante uma operação da Tropa de Choque da Polícia Militar em Amanbaí, a 350 quilômetros de Campo Grande.

As ameaças contra os indígenas em Mato Grosso do Sul chegaram a um nível tão crítico, que a Vital Voices Global Partnership teve que cancelar o envio de uma equipe de filmagem ao local onde gravaria uma entrevista com a homenageada brasileira.

Mas mesmo diante de uma vida marcada pela violência contra sua família e seu povo, Valdelice promete não retroceder.

"Não adianta os pistoleiros continuarem nos matando, vamos seguir demarcando nossa terra com nosso próprio sangue."

*

Rodrigo Simon é Pesquisador Afiliado ao Brazil LAB da Universidade de Princeton (EUA)