Nova beata brasileira reconhecida pelo Papa morreu ao resistir a estupro
Quarenta anos e três meses depois de ser brutalmente assassinada, a mineira Isabel Cristina Mrad Campos será beatificada. Em 2020, o Papa Francisco reconheceu o martírio pelo qual ela passou: foi vítima de uma tentativa de estupro e morta pelo agressor. Era o que faltava para a Igreja Católica marcar a solenidade que a tornaria oficialmente uma beata. A pandemia da covid-19 atrasou o cronograma inicial, que, agora, já tem data: será no dia 10 de dezembro, em Barbacena, a 172 km de Belo Horizonte, cidade onde Isabel nasceu.
O processo até aqui durou mais de 20 anos. Foi instalado em 2001, quando ela recebeu do Vaticano o título de "serva de Deus". Mas, antes mesmo disso, desde a sua morte, o modo como viveu, sempre ligada a causas religiosas, e o sofrimento passado nas mãos do criminoso, começaram a atrair fiéis ao túmulo com os restos mortais em sua terra natal.
Lá, devotos rezam e agradecem por graças que dizem ter obtido pela intercessão da futura beata. Na internet, há vídeos e textos em vários idiomas sobre Isabel Cristina.
Tentativa de estupro e morte
O jornal "Tribuna de Minas" noticiou o assassinato, em setembro de 1982, da seguinte forma: "Maníaco mata moça com 15 facadas". Em frente ao prédio, a foto que acompanha o texto mostra uma multidão e um carro da polícia.
Naquele ano, ela havia se mudado para Juiz de Fora, a 96 km de Barbacena, para fazer um curso pré-vestibular —pretendia entrar na faculdade de Medicina e ser pediatra. Depois de morar por um curto período com outras estudantes, decidiu morar em um apartamento com o irmão, no centro da cidade.
Um homem foi contratado para montar os móveis do apartamento, no sexto andar. Retornou poucos dias depois, no final da tarde do dia 1º de setembro, uma quarta-feira, alegando que precisaria terminar o serviço.
A notícia divulgada na época, e que também embasa o processo na igreja, é que o montador de móveis tentou estuprar Isabel Cristina, então com 20 anos, que resistiu até a morte.
Segundo os registros, o irmão de Isabel, Paulo Roberto Mrad Campos, chegou no apartamento no início da noite e ouviu o som da TV e do rádio em alto volume. No quarto, o corpo da irmã estava ensanguentado, com várias marcas das facadas, duas delas na região vaginal e o restante nas costas.
O modo que o criminoso agiu está nos documentos da Arquidiocese de Mariana (MG) , responsável pelos trabalhos junto ao Vaticano.
"Encontrando resistência, deu-lhe uma cadeirada na cabeça, amarrou, amordaçou, rasgou suas roupas. Como Cris não cedeu e continuasse resistindo, desferiu-lhe 15 facadas, matando-a sem piedade. Foi um crime cruel, com grande repercussão, e que abalou muito a família e todos os que souberam do caso", diz um dos textos sobre o assunto no site da instituição católica.
No local do crime, moradores mostram desconforto com história
Universa foi até o prédio e conversou com pessoas que viviam no prédio naquela época. A construção tem 14 andares e fica em uma rua de cerca de 200 m de extensão.
Como o lugar foi palco de um crime brutal, é notório o desconforto dos moradores mais antigos em falar do assunto: todos preferem não se identificar. Um deles disse que o controle de entrada de pessoas na época não era rígido, pois não havia interfone nem câmeras.
Dois moradores confirmaram relatos feitos no dia do crime, de que Isabel morava lá há menos de um mês, era sempre muito educada e pouco vista circulando.
A reportagem procurou as polícias Civil e Militar, o Tribunal de Justiça de Minas Gerais e o Arquivo Público Mineiro para ter acesso ao boletim de ocorrência e ao processo, mas os documentos não foram localizados.
Morreu virgem e com terço em forma de anel no dedo
Segundo o coordenador-geral da celebração de beatificação, monsenhor Danival Milagres Coelho, a futura beata não foi violentada sexualmente."Como ele [o assassino], não conseguiu ter relações sexuais, ele deu as duas últimas facadas no órgão genital, como que dizendo para ela que já que se defendeu por causa dos seus valores, não morrerá virgem. Mas ela morreu virgem, não foi estuprada", relatou.
Isabel morreu com um terço em forma de anel em um dos dedos. E esse detalhe, inclusive, será representado na imagem a ser apresentada na solenidade em dezembro, de acordo com Coelho.
Por que Isabel será beatificada?
A documentação para sustentar o pedido de beatificação foi juntada durante oito anos, entre 2001, ano da aprovação da abertura do processo por Roma, e 2009, na chamada fase diocesana. Nessa etapa também foram colhidos depoimentos de quase 60 pessoas, além de tudo ter sido digitado e traduzido para o italiano, uma exigência da Igreja.
O reconhecimento pelo Vaticano para tornar Isabel Cristina beata se deu não só pelo sofrimento, tentando se defender dos golpes de faca, mas também pela vida que levou, sempre defendendo valores pregados pelo catolicismo, como a castidade e a ajuda aos mais pobres. "Quando o papa reconhece o martírio, reconhece não só pelo fato dela se defender, mas a motivação que fez com que ela lutasse contra a violência", esclarece o monsenhor.
Para reforçar esses argumentos, o religioso lembra que, quando Isabel foi morar em Juiz de Fora, cidade com uma população quase quatro vezes maior do que sua terra natal e com mais oportunidades de diversão, ela foi alertada para não se desviar dos valores que pregava. "E disse que é preferível morrer a pecar, que é preciso resistir ao mal, custe o que custar", recorda o monsenhor, para destacar o quanto estava disposta a manter-se no que acreditava.
Segundo o religioso, a jovem chegou a namorar, mas o casal havia terminado. "O namorado deu testemunho sobre como viveram esse namoro, na castidade", complementa.
Isabel também dava muita atenção aos mais pobres. De família simples, ela seguiu os exemplos dos pais e auxiliava nos trabalhos dos vicentinos, pessoas leigas muito atuantes com idosos e crianças. Ajudava em um asilo aos sábados na parte de alimentação e limpeza e fazia trabalho com menores de famílias carentes.
O assassino
No site da Sociedade de São Vicente de Paulo, à qual a futura beata pertencia em Barbacena, há o relato de uma tia de Isabel. A parente conta que faria aniversário no dia seguinte ao assassinato e havia preparado o doce preferido da sobrinha —bolinho de chuva— para comemorarem, mas recebeu uma ligação e foi avisada sobre o crime.
É um dos raros relatos encontrados na internet que citam o suposto nome do assassino, mas apenas o primeiro: Maurílio. O site do Dicastério para as Causas dos Santos, entidade do Vaticano responsável pela canonização de santos, dá o nome completo: Maurílio Almeida Oliveira.
Não há confirmação oficial sobre julgamento, sentença e punição do agressor. A reportagem não localizou defesa nem familiares de Santos.
Cerimônia terá distribuição de pedaços de roupas de beata
São esperadas cerca de 15 mil pessoas no dia da beatificação, no parque de exposições de Barbacena, para uma solenidade de duas horas de duração. A igreja está confeccionando 40 mil relíquias para serem distribuídas a paróquias e aos fiéis, feitas de pequenos pedaços de roupas de Isabel. A família doou todo o acervo dela para a paróquia. Já foram compostos um hino e uma oração oficial para a futura beata.
Uma capela está sendo reformada para ser dedicada a ela. Lá, ficarão seus restos mortais e um memorial para exposição de documentos, jornais e outros itens ligados a Isabel Cristina, além de uma imagem em tamanho real, de 1,60 m, de madeira.
Márcio Cleber é voluntário entre os que ajudam a organizar o arquivo do memorial. As fotos a serem expostas, por enquanto, não são divulgadas.
Cleber também não revela as graças que diz ter alcançado por intercessão da futura beata, que passou a conhecer e a venerar depois de ler um livro sobre sua vida. "Isso fica entre ela e eu", brinca.
Mas acredita que a repercussão da beatificação ajudará mais pessoas. "Não tenho dúvida de que a devoção a ela vai ficar mais fervorosa. Em tempos difíceis, por causa da pandemia, as pessoas estão vindo com mais sede de Deus, de fé, de buscar mais aos excelentes exemplos pra continuar numa caminhada".
Canonização exigirá comprovação de milagre
Após ser beatificada, a próxima etapa é a de canonização, visando torná-la santa. Mas, nesse ponto, é necessária a comprovação de um milagre obtido pelo intermédio dela para que se dê esse reconhecimento.
O monsenhor Danival Milagres Coelho afirma já existirem relatos, mas, ainda assim, será um processo demorado, sem previsão para a conclusão. Para 2023, está praticamente descartado. "O relato do milagre precisa de laudo feito por um perito, é uma situação que nem a ciência ou medicina explica", detalha o religioso.
Muito dolorido recordar tragédia, diz irmão
O irmão da futura beata não quis conceder entrevista. Quatro anos mais velho que ela, Paulo Roberto, hoje com 64, ainda mora em Juiz de Fora e trabalha como administrador de empresas. Por meio do monsenhor responsável pela celebração, disse que prefere não se expor para não passar a impressão de que a família estaria por trás da iniciativa de tornar a irmã beata quando, na realidade, segundo o religioso, a responsabilidade é da própria Igreja Católica. Além disso, Paulo Roberto alega ser muito dolorido recordar um caso tão trágico.
Os pais de Isabel são falecidos e, antes de morrerem, também optaram pela discrição sobre o caso trágico envolvendo a filha. Em um vídeo de 2011 disponível na internet, Helena Mrad Campos e José Mendes Campos aparecem ao lado do padre Geraldo Cifani, também falecido. O religioso fala sobre o andamento do processo de beatificação e relembra a vida de Isabel.
Cifani foi um dos incentivadores da beatificação, um dos primeiros a começar a reunir relatos e documentos, tendo, inclusive, escrito um livro contando a história da vida da futura beata. Na gravação, no dia do aniversário dela, os três estão em frente ao túmulo da jovem.
Um irmão de Helena, Miguel Mrad, explicou à reportagem que a família sempre escolheu não propagar ao público a causa da beatificação.
Onze anos mais velho do que a sobrinha, afirmou que o objetivo dela era se formar em medicina e dedicar "um bom tempo para cuidar de pessoas que mais precisam". "Trabalhava com o pai dela, a nossa convivência era próxima. A família não acha correto falar da gente mesmo, mas é importante os meios de comunicação fazerem isso para mostrar para muita gente um exemplo de vida".
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