Filhos de vítimas de feminicídio recebem ajuda financeira: 'É um baque'
Em setembro de 2017, o técnico de qualidade Douglas Gottardi e sua esposa tiveram de voltar às pressas da Espanha para Vitória (ES). Eles viajavam havia um mês e pretendiam viver no exterior quando uma tragédia fez com que todos os planos fossem suspensos: a irmã dele, a médica Milena Gottardi, foi assassinada a tiros a mando do marido dela. Três dias depois, já no Brasil, o casal assumiu a guarda das duas sobrinhas, na época uma bebê de dois anos e uma criança de nove.
Milena já estava com receio das agressões do marido e havia deixado uma carta em que expressava o desejo de que suas filhas ficassem aos cuidados do irmão, caso alguma coisa acontecesse com ela.
"É um baque. Você pensa 'será que vou dar conta? Será que vou conseguir?'. E não é só a parte de cuidar de uma criança, mas lidar com toda a situação emocional de uma criança que teve um pai preso por matar a mãe e que começa a morar com outra família, que tem outros costumes", diz ele que, na época, tinha 36 anos.
"As coisas caminharam muito rápido: ela foi velada no sábado e na segunda-feira as meninas já voltariam para a escola. O caso ganhou muita repercussão na mídia, e a gente tinha aquele medo de a maior chegar na escola e ficar sabendo tudo pelos colegas. Isso nos obrigou a conversar com elas o quanto antes", lembra Douglas. "A mais velha desenvolveu ansiedade. Contar com o apoio de psicoterapia e psiquiatras ajudou muito", diz.
Para auxiliar famílias que, como a de Douglas, precisam lidar com a mesma situação de uma hora para outra, cidades têm criado benefícios financeiros para órfãos de mães vítimas de feminicídio. O município de Vitória é um dos que discutem conceder auxílio a crianças e adolescentes nessas circunstâncias. O projeto de lei, que tramita na Câmara dos Vereadores, leva o nome de Milena Gottardi.
"Eu não sabia desse PL, ficamos muito felizes com a menção e homenagem à Milena", diz o irmão da médica.
"É uma iniciativa muito boa, principalmente para famílias carentes. O benefício financeiro faz muita diferença para dar suporte aos órfãos e suprir as necessidades básicas deles e da família que, assim como a gente, assumiu a criação de uma criança de uma hora para outra", diz Douglas.
As filhas de Milena tiveram acesso a uma pensão particular que a médica tinha. "Não faltou nada graças a esses benefícios e a gente teve condição de dar uma vida boa a elas. Mas imagino uma família que não tem condições nenhuma, uma avó aposentada que recebe um salário baixo e cai numa situação dessa de ter que criar um neto", diz. "Um projeto que vai auxiliar na parte financeira é menos uma preocupação."
Programas pagam até um salário mínimo a jovens
Desde setembro, a prefeitura de Olinda (PE) oferece um auxílio de R$ 700, com acréscimo de R$ 105 a cada menor de idade cuja mãe foi vítima de feminicídio —esse valor pode chegar a R$ 1.120 por mês.
A Secretaria de Comunicação do município informou a Universa que o programa, batizado de Olinda Acolhe, beneficia atualmente apenas uma família, já que as outras famílias que procuraram o Centro Especializado de Atendimento à Mulher da cidade ainda não estão com a documentação em dia. Para receber o auxílio, a família deve estar inscrita no CadÚnico, residir no município há pelo menos seis meses e ter a guarda oficializada da criança ou adolescente.
O pagamento do auxílio também está condicionado ao cumprimento de alguns requisitos, a exemplo do programa Bolsa Família, como estar com a vacinação em dia, fazer acompanhamento do estado nutricional e ter frequência escolar mínima de 75%.
A assistente social e terapeuta familiar Jane Valente, especializada em violência doméstica contra crianças e adolescente pela USP (Universidade de São Paulo) e consultora da Rede Latino-americana de Acolhimento Familiar, explica que o ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente) desde 2009 reconhece a família extensa da criança como família. Ou seja, estes familiares do circuito próximo da criança têm a prioridade para ter a guarda após a morte da mãe.
"Uma criança só iria para família acolhedora ou acolhimento institucional quando se descartam pessoas da família com predisposição para cuidar dela. Só assim o estado entra com a figura externa à família", diz.
A assistente social avalia que as leis são positivas, principalmente quando aliadas às condicionantes como frequência escolar. "Isso é bom para dar segurança à criança, vislumbrando a chegada ao nível universitário, como alguns destes programas propõem ao dar prorrogação caso o órfão seja maior de idade e esteja matriculado na faculdade. Sem isso, esse menino provavelmente vai começar a trabalhar mais cedo para contribuir com a renda da família. Então, é uma política de equidade."
'Projeto inovador por olhar para os órfãos'
Na cidade de São Paulo, foi criado há menos de um mês o Auxílio Ampara, que foi sancionado no dia 27 de outubro pelo prefeito Ricardo Nunes (MDB). A lei ainda aguarda ser regulamentada para definir o fluxo de atendimento, e a qual secretaria o benefício estará vinculado para que o auxílio esteja disponível.
O programa prevê o valor de até um salário mínimo por cada criança e adolescente até os 18 anos —será possível fazer renovação até 24 anos, caso o beneficiário esteja matriculado no ensino superior.
A coordenadora de Políticas para Criança e Adolescente da Secretaria de Direitos Humanos e Cidadania, Tifani Paulini Coelho, afirma que o projeto é inovador por ser a primeira política pública voltada especificamente para órfãos no município de São Paulo.
"O projeto é uma iniciativa da Prefeitura em parceria com o Ministério Público. Até então, a gente não tinha nenhuma legislação definida para órfãos. Pode ser um marco para se começar a pensar em orfandade", diz.
Tifani explica que se trata de uma política compensatória. "Esse auxílio foi pensado pela necessidade de políticas para nivelar as perdas que essa pessoa sofreu. Quando um jovem fica órfão ele vai passar diversas necessidades de desenvolvimento sem ter a mãe. Essa política vem para tentar compensar essa perda financeiramente —porque o outro impacto, da perda, é quase impossível superar", diz.
"Às vezes um familiar quer ficar com essa criança, mas por questões financeiras ela fica desamparada e acaba sendo acolhida. Com esse auxílio, há uma chance de que ela permaneça com sua família extensa, quando isso é possível."
Mais avançado, o programa do Rio de Janeiro já está em funcionamento e atende duas famílias. O município passou a oferecer o Cartão Mulher Carioca a órfãos do feminicídio em maio deste ano. Na cidade, no entanto, o auxílio financeiro de R$ 400 para cada um dos filhos da vítima é disponibilizado por apenas seis meses.
O programa, vinculado à Secretaria de Políticas e Promoção da Mulher, é oferecido para as crianças e adolescentes até 18 anos que ficaram órfãos em decorrência de um feminicídio a partir de maio.
O auxílio será administrado por quem estiver com a guarda provisória ou a tutela das crianças. Para receber, é preciso que a família responsável por esses filhos possua renda máxima de um salário mínimo, more na cidade do Rio de Janeiro e seja atendida por um dos equipamentos da Rede de Enfrentamento à Violência contra a Mulher para inscrição no Programa.
O cartão também estará disponível para os filhos de até 24 anos, que sejam dependentes da vítima, ou que comprovarem matrícula na rede de ensino oficial, ou ainda que apresentem invalidez permanente conforme laudo médico. As mulheres guardiãs ou representantes legais desses órfãos serão inseridas de forma prioritária nos cursos de capacitação do Programa "Mulheres do Rio" ou em outras políticas públicas e projetos da Secretaria.
Para Jane Valente, os programas devem ir além do apoio financeiro. "O Estado tem o dever de acompanhar a família que estará com essa criança —que em muitos casos viu a cena do homicídio e, se não viu, de uma hora para outra tem de lidar com a perda da mãe. Há uma maior possibilidade, se o trauma for cuidado desde o início, de a criança não somatizar esse momento difícil da vida dela", diz a assistente social.
"Já é sabido que um trauma na infância pode ocasionar distúrbios. Não podemos mais errar com essa criança", finaliza.
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