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Distúrbio do sono provoca comportamento sexual e pode acabar em estupro

Parassonia sexual pode causar danos aos diagnosticados e a terceiros  - Getty Images/iStockphoto
Parassonia sexual pode causar danos aos diagnosticados e a terceiros Imagem: Getty Images/iStockphoto

Hysa Conrado

De Universa, em São Paulo

23/11/2022 04h00

Um tipo de distúrbio raro do sono foi parar no centro de uma discussão judicial sobre estupro depois que um processo foi arquivado no Reino Unido. Neste caso, o acusado argumentou que a vítima, Jade McCrossen-Nethercott, sofria de uma parassonia que envolve comportamentos sexuais enquanto a pessoa dorme e, por isso, ele alegou que não a forçou a praticar o ato, pois não percebeu que ela não tinha consciência a respeito da relação.

Mas como isso é possível? Universa ouviu especialistas em medicina do sono e em processo penal para entender como a violência sexual é vista em um contexto no qual esse distúrbio serve como cenário para o abuso.

É importante dizer que a sexônia ou parassonia sexual não é um distúrbio comum a pessoas que sofrem de sonambulismo, além de que é considerado raro pela medicina, segundo Monica Andersen, diretora do Instituto do Sono e pesquisadora do tema.

Imagine a seguinte cena: um homem se masturba incansavelmente enquanto dorme, a ponto de ficar com o pênis e os dedos machucados, e, ao acordar, não se lembrar do que aconteceu.

Este caso está entre os relatos documentados sobre o distúrbio, mas é só a ponta do iceberg, segundo a especialista, que destaca uma ocorrência de estupro no qual o homem diagnosticado com parassonia acabou condenado em 2006.

"Um casal de amigos voltou de uma festa, na qual houve ingestão de bebida alcoólica, e foram dormir juntos no mesmo lugar. Chegando lá, a mulher foi estuprada três vezes e ela relata que, ainda que fosse seu melhor amigo, ela percebia que, durante o ato, ele não era a pessoa que ela conhecia. Quando ela saiu do apartamento, percebeu que ele não tinha nenhuma assimilação do que havia acontecido", conta Monica.

A especialista explica que a parassonia sexual é muito rara e que os episódios não costumam acontecer com frequência ou não são percebidos sempre que acontecem, principalmente se a pessoa que tem o distúrbio dormir ou morar sozinha.

A incidência costuma ser maior entre homens, mas Monica afirma que a precisão da estimativa é baixa, já que o próprio diagnóstico costuma ser difícil de acontecer. Entre as mulheres, é comum que elas vocalizem sons e gemidos sexuais; já entre os homens as ocorrências costumam envolver masturbação intensa e ato sexual com penetração.

Ainda não se sabe as causas dessa parassonia, mas há fatores que podem desencadear os episódios para aqueles que já tem uma predisposição, como privação do sono, estresse intenso e ingestão de substâncias como álcool e drogas ilícitas.

"Não é algo que acontece do nada, há um conjunto de evidências desde a adolescência de que essa pessoa tem problemas com o sono, que é mais ansiosa e que tem queixas em relação à qualidade do sono", afirma a médica.

Para que o diagnóstico seja feito, de acordo com Monica, é necessário realizar uma avaliação minuciosa sobre o sono do paciente, além de ouvir relatos de familiares e pessoas próximas que possam ter presenciado, ao decorrer da vida, comportamentos esporádicos durante o sono que possam indicar o distúrbio.

Também é importante que, se procurado mesmo que para consultas que não tenham como motivação essa parassonia, o médico especialista questione o paciente sobre eventuais comportamento sexuais durante o sono, mesmo que não sejam episódios que envolvam terceiros.

Estupro de vulnerável

Os dois casos citados nesta reportagem tiveram desfechos diferentes na Justiça: no primeiro, a britânica teve o processo de estupro anulado mesmo sem um laudo definitivo comprovando que ela, de fato, pode ser diagnosticada com a parassonia sexual. Por outro lado, no caso de 2006, o homem, que era a pessoa com o distúrbio, foi condenado mesmo o episódio tendo sido caracterizado como uma situação de sexônia.

A desembargadora Ivana David, especialista em Teoria da Prova no Processo Penal, explica que existem cenários diferentes para analisar as situações de crimes que envolvem a parassonia.

Se, por exemplo, uma mulher com sexônia acaba praticando um ato sexual com um homem e, ao acordar, entende a situação como um abuso, é preciso analisar se o homem entendia que ela estava em um quadro no qual não havia discernimento. Caso seja comprovado que ele sabia da falta de consciência dela, o episódio seria caracterizado como estupro de vulnerável.

"Equipara-se para essa vulnerabilidade alguém que tenha uma enfermidade ou uma deficiência mental que faz com que ela perca esse discernimento. Então, teoricamente, ele vai responder pelo crime de estupro de vulnerável e pode ser condenado a uma pena de 8 a 15 anos de prisão", explica a desembargadora.

No entanto, se o homem não percebe a situação de vulnerabilidade da mulher, o entendimento seria o de que não há dolo, ou seja, a vontade de praticar o crime. O desfecho vai depender da forma como as provas foram apresentadas durante o processo.

"A mulher vai acordar, vai perceber que manteve a relação sexual, vai fazer laudo, perícia, vai à delegacia e apontar com quem estava, esse tipo de prova vem muito forte no processo", afirma Ivana.

Em um caso no qual é o homem quem tem o distúrbio e acaba praticando um ato sexual forçosamente com uma mulher, e isso é provado na Justiça, ele a conduta criminosa é afastada e ele seria absolvido.

"Se ele sabe que tem o distúrbio e não comunica para as pessoas do seu entorno, o que o Ministério Público iria discutir é se existe um dolo eventual, como o da pessoa que bebe e vai dirigir, mesmo sabendo que pode perder os sentidos, atropelar e matar alguém", explica a desembargadora.

Ainda assim, a depender do desfecho, a especialista destaca que são permanentes as marcas emocionais de uma violência sexual, ou mesmo de uma acusação da qual a pessoa é inocente e ela passa a carregar um estigma pela acusação de um estupro, por exemplo.

"Esse é tipo de crime que cala na alma das pessoas. São situações em que a mulher, a criança ou o homem vítima de crime sexual raramente retoma a vida como era antes. Então, por mais que se condene o indivíduo, isso não vai reparar o dano emocional que a vítima carrega para o resto da vida", conclui.