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'Ai, Preto': funkeira Bianca foi do chão de um barraco a turnê na Europa

Bianca, de "Ai, preto" - Brunini/Divulgação
Bianca, de 'Ai, preto' Imagem: Brunini/Divulgação

De Universa, no Rio de Janeiro

06/12/2022 04h00

Nascida e criada em uma favela de Campos dos Goytacazes (RJ), a cantora Bianca Azevedo Leal, 21 anos, tinha na mãe solo um exemplo de persistência a ser seguido: mesmo com pouco recurso, Mabel, 39, dividiu-se entre a educação da filha e quatro faculdades, entre elas administração e licenciatura em geografia.

E foi nessa disposição que Bianca se inspirou quando decidiu morar na capital, aos 16 anos, para realizar o sonho de ser funkeira. Dormiu no chão de um barraco sem móveis, se viu muitas vezes sem ter o que comer e encarou rejeição do público nos primeiros shows. Hoje tem 319 mil seguidores no Instagram, 1,7 milhão no TikTok, e faz de 12 a 15 apresentações por mês.

Ainda alcançou o feito — após Anitta — de ter sido a segunda funkeira do país a pisar no Palco Mundo do Rock in Rio, em setembro, quando cantou o hit "Ai, Preto" (parceria dela com L7nnon e Biel do Furduncinho) com Camila Cabello. "Até hoje está todo mundo meio que assimilando tudo o que está acontecendo", diz a Universa, por telefone.

Mudança para o Rio sozinha e com R$ 200

O desejo de tornar-se cantora veio olhando a mãe e a tia cantando em corais de igreja. Mas primeiro fez dança, aos 8, estudou oboé e tocou em orquestra. Começou a se apresentar como dançarina na sua cidade na adolescência. Ainda jogou vôlei e fez cursos técnicos de solda de tubulação e farmácia. "Eu pensava: 'meu Deus, se isso não der certo eu vou ter pelo menos um curso'."

Mas Bianca queria mesmo era cantar funk. O que a impedia, ela conta, eram ofensas que escutava inclusive de pessoas próximas, que não achavam que daria certo.

Nas primeiras apresentações, ainda em Campos, via parte do público virando as costas para ela. "Era muito ruim e ficava mal. Acho que faziam aquilo por ser mulher da favela cantando funk. E talvez porque as pessoas não acreditassem que uma conterrânea podia fazer sucesso, então um dia pensei que se ali não me respeitavam precisava ir para a cidade grande. E foi o que fiz."

Bianca se mudou para o Rio de Janeiro com R$ 200 e sem conhecer ninguém. Parou numa quitinete no morro do Congonha, em São João de Meriti (Baixada Fluminense), e por conta própria buscou espaços para se apresentar.

"Eu ligava para os espaços fingindo ser outra pessoa para tentar fechar shows. Mandava mensagens do telefone da minha avó, e alguns amigos me ajudavam. No Natal de 2018 eu consegui três shows e o público cagou na minha cabeça. Fiquei muito mal por ter passado a data longe da minha família para cantar para a parede. Tive uma crise de choro danada", ela relembra.

Além de ser ignorada, recebeu propostas indecorosas. "Tem muita gente tentando se aproveitar. É muito ruim tentar uma oportunidade de trabalho e a pessoa dar em cima de você para te dar uma oportunidade."

A cantora ficou "pulando de galho em galho no Rio", morando de favor com uma amiga. E da Baixada Fluminense parou na Rocinha, zona sul. Chegou a conseguir emprego como vendedora numa loja, na zona norte, mas não chegou a trabalhar: viu que a carga horária com apenas um dia de folga atrapalharia a carreira. Com a amiga, resolveu vender caipirinha na praia. "Não deu muito certo, mas pelo menos tentei."

Recebia uma pensão do meu pai e só conseguia pagar o aluguel. O lugar não tinha móvel nenhum. Dormi no chão real, com lençol e papelão.

A situação mudou completamente no fim de 2019, quando conheceu o DJ Pedro Henrique e gravou "Tudo no Sigilo", com MC Roger. Seu empresário gostou tanto de Bianca que a chamou para morar no seu estúdio, em Duque de Caxias, na Baixada Fluminense.

Em plena pandemia, em 2020, viu seu nome no Top 20 das artistas solo na plataforma Spotify, ao lado de nomes como Anitta, Marília Mendonça e Ludmilla; foi a única brasileira citada pela revista Billboard em uma lista que indicava "20 cantoras latinas para descobrir antes de 2020 acabar" e somou mais de 750 milhões de visualizações com o hit, liderando o ranking das músicas mais virais em plataformas digitais como Spotify, Deezer e TikTok.

"A partir daí minha vida deu aquela volta louca. Eu saí do estúdio e fui morar de frente para a praia."

Hit gravado dentro do armário

Foi durante a primeira turnê pela Europa que surgiu a oportunidade de gravar o sucesso "Ai, Preto". Mas não dava para esperar por sua volta de Portugal, e ela achou uma solução inusitada.

"Eu gravei no telefone. Coloquei um monte de coisa dentro de um armário, como pano e travesseiro, botei minha cabeça, cantei e mandei para o DJ Biel. E quando cheguei ao Brasil fui direto do aeroporto para a Rocinha gravar o clipe. Me maquiei no caminho sem quase nem ver, cansadíssima."

Ninguém sabe do rolê, né? Acham que foi tudo bonitinho, mas é desse jeito.

E foi assim que o hit, gravado ainda com L7nnon, somou mais de 62 milhões de streamings de áudio e vídeo e alcançou o Top 1 no Spotify Brasil no início deste ano. Até cair no gosto da cantora cubana Camila Cabello e receber o convite para o Rock in Rio. Antes, Bianca havia se apresentado no Palco Supernova.

"Até hoje eu não consigo acreditar no que aconteceu. Fiquei em choque. Foi muito doido porque além de cantar no Palco Mundo com uma artista internacional e meus parceiros da música, tive a responsabilidade de ser a segunda mulher funkeira a pisar ali. A primeira foi a Anitta e a gente sabe o tanto que ela lutou. Meio que quebrou mais uma vez uma barreira", conclui a artista, que assinou recentemente com a gravadora Universal e lançou "Jogadinha", com Ptka MC e DJ Pedro Henrique.

Ao abraçar Camila após a apresentação, ainda ouviu um "obrigada, gostosa, eu amo o Brasil" da artista internacional.

"Pode ser clichê, mas queria dizer principalmente às mulheres, que sofrem todo o tipo de preconceito, para não desistirem", aconselha.