Afegãs vivem acampadas em aeroporto de SP: banho semanal e bebê de 1 mês
A engenheira de software afegã Zahra* dorme no chão do aeroporto de Guarulhos, em São Paulo, desde o dia 18 de novembro. Montou barracas improvisadas com carrinhos de bagagem, mantas e tapetes. Está com o pai, a mãe, três irmãos, uma cunhada, um sobrinho de dois anos e outros 300 afegãos —sendo 40 crianças— que fugiram do regime talibã e vivem no aeroporto à espera de um lugar para ficar.
No ano passado, com a retomada do controle do país pelo grupo fundamentalista, Zahra foi impedida de trabalhar por ser mulher.
O irmão, funcionário de uma ONG de direitos humanos cuja sede foi atacada pelo governo, e o pai, funcionário do alto comissariado da Unicef (braço da ONU para infância), corriam o risco de ser presos.
A família ficou em um esconderijo por meses até fugirem caminhando e de carro até o Irã. Lá, pediram visto humanitário na embaixada brasileira, que saiu em seis meses.
"Nós, mulheres, não podemos mais ir à escola, à universidade nem ao escritório trabalhar. Essa é a lei do Talibã. Mulheres só podem ficar em casa e esconder seu corpo e identidade", conta Zahra. Fugir de tamanha opressão, portanto, mesmo que para viver acampada em um aeroporto, é um alívio.
"'Inshallah' vamos aprender português e trabalhar. O Brasil é um bom país, salvou nossa vida", disse a engenheira, em entrevista a Universa, em inglês.
Recém-nascido e trabalho de parto em corredor
No último ano, o Brasil concedeu mais de 6.000 vistos humanitários para afegãos em situação de ameaça e risco de vida. Os primeiros começaram a chegar em agosto. Cerca de 3.000 já entraram no país e 200 seguiram para outros países latino-americanos.
As ONGs Frente Afegã e Cáritas e o Acnur (Alto Comissariado para Refugiados da ONU) estão acompanhando de perto a situação dos afegãos em Guarulhos. Tentam localizar abrigos, garantem alimentação e lidam com emergências, como o princípio de um parto no começo de novembro.
Com contrações e alguns centímetros de dilatação, foi encaminhada a um hospital próximo e, depois, para um abrigo. Mãe e filho passam bem.
'Minha bebê terá uma vida melhor no Brasil'
Em um corredor lotado de barracas improvisadas, Fatima*, 27, varria o chão da barraca em que dorme. Grávida de cinco meses, ela deixou o Afeganistão também por sofrer perseguição.
Trabalhava em uma organização social em prol dos direitos das mulheres. A pauta principal era combater o casamento forçado de meninas menores de 18 anos, uma prática comum no país. Quando o Talibã retomou o poder, o escritório onde ela trabalhava foi fechado, e alguns de seus colegas foram presos. Após fugir para Teerã, capital iraniana, ela e o marido conseguiram os vistos brasileiros.
Estou feliz de estar aqui, quero viver legalmente, trabalhar, ter meus direitos. O Talibã não deixa as mulheres trabalharem, estudarem, colocarem o pé para fora de casa. Se minha bebê for menina, ela terá uma vida 100% melhor no Brasil. Fatima, refugiada afegã
Um mês para conseguir um lar
Cada família tem demorado em média um mês para conseguir uma vaga. Todos os dias, grupos de pessoas conseguem vagas em abrigos e deixam as barracas do aeroporto. Mas o número de gente que chega é maior do que a quantidade que consegue sair.
Segundo voluntários, é difícil acomodar todos, principalmente os grupos mais numerosos.
No caso da família de Ismail Nabizada, 61, são dez membros: a mais velha é a mãe, de 84, e a mais jovem, a neta, de um mês.
Por ser o único que fala inglês, foi ele que contou as histórias das mulheres da família à reportagem. A situação mais grave é a da mãe. Deitada em um tapete no chão do aeroporto, ela aguarda por atendimento médico para tratar uma ferida na perna, resultado de uma queimadura com água fervente feita por membros do Talibã.
Os Nabizada pertencem à etnia hazara, uma minoria perseguida pelo regime. Suas mesquitas e escolas foram bombardeadas,e amigos foram mortos e presos, segundo relatou Ismail.
O membro mais jovem da família Nabizada é a bebê Azita, que chegou no Brasil com apenas três semanas de vida. Voluntários do coletivo Frente Afegã conseguiram atendimento médico para a bebê, que chegou gripada de um voo vindo do Qatar. A mãe, Madena, de 26 anos, se diz aliviada e esperançosa pela nova vida.
"Quero morar aqui e ter uma boa vida com meu marido e minha bebê", fala Madena, mãe de primeira viagem, contando com a tradução do sogro, Ismail, para o inglês.
Banho uma vez por semana
As famílias afegãs criam um cotidiano no aeroporto. Durante o dia, os colchões infláveis são colocados para fora das barracas, que ficam livres para as famílias fazerem as refeições e para as crianças brincarem.
O almoço e o jantar são providenciados pelo Posto Avançado de Atendimento Humanizado ao Migrante, órgão da prefeitura de Guarulhos. Café da manhã, bolachas, água e itens de higiene, como absorventes e fraldas, estão sendo arrecadados e entregues por voluntários. Uma das reivindicações mais urgentes dos afegãos é o direito a tomar banho.
Uma organização neopentecostal está fornecendo banhos uma vez por semana para os refugiados. A prefeitura de Guarulhos providenciou ônibus para levá-los até o local.
Os refugiados não podem usar os vestiários e chuveiros do aeroporto livremente. Segundo a concessionária responsável pela administração do local, a GRU Airport, "o vestiário, por se tratar de uma área operacional destinada a funcionários, é viabilizado dentro das condições e disponibilidade do aeroporto, de acordo com um planejamento alinhado com a Prefeitura de Guarulhos".
A concessionária diz que tem contribuído com a limpeza constante do espaço. "Além disso, a GRU Airport reporta os fatos frequentemente ao Ministério Público Federal."
Ajuda vem de voluntários e de ONGs
O Coletivo Frente Afegã foi criado em agosto por voluntários que se sensibilizaram com a situação dos refugiados. Na época, havia pouco mais de 70 pessoas acampadas.
"Quando cheguei, fiquei em choque com a situação daquelas 70 pessoas. Esse número foi crescendo, crescendo e agora temos cerca de 300. E a previsão é de aumentar ainda mais nos próximos dias", diz a voluntária Swany Zenobini.
Todos os dias, chegam mais famílias afegãs em voos vindos de Doha, Dubai e Istambul. "O Posto Humanizado não funciona 24 horas, somos o primeiro apoio que eles recebem", diz a voluntária Aline Sobral.
"Está ficando apertado. O saguão está todo tomado, o corredor que só tinha [barracas] de um lado agora tem dos dois", relata Aline.
Procurado pela reportagem, o Ministério das Relações Exteriores afirmou que apenas se responsabiliza pelos vistos, e não pelo acolhimento dos refugiados que chegam ao Brasil.
Itamaraty diz que "acompanha com atenção" aumento do número de refugiados
O Ministério das Relações Exteriores afirmou ainda, em nota, que "tem acompanhado com atenção o aumento no número de pessoas afegãs que chegam ao Brasil" desde setembro de 2021, quando foi adotada uma portaria para conceder visto temporário e acolhida humanitária para eles.
"Até o momento, foi autorizada a emissão de 6.302 vistos conforme a portaria mencionada. O MRE não tem conhecimento de outro país que mantenha, atualmente, ativa política de visto a afegãos, nos moldes da política brasileira."
O Coletivo Frente Afegã está arrecadando alimentos e itens de higiene como absorventes e fraldas. Interessados em ajudar podem contatar a entidade no Instagram pelo perfil @coletivofrenteafega.
*Nomes foram alterados para proteger a identidade das entrevistadas.
ID: {{comments.info.id}}
URL: {{comments.info.url}}
Ocorreu um erro ao carregar os comentários.
Por favor, tente novamente mais tarde.
{{comments.total}} Comentário
{{comments.total}} Comentários
Seja o primeiro a comentar
Essa discussão está encerrada
Não é possivel enviar novos comentários.
Essa área é exclusiva para você, assinante, ler e comentar.
Só assinantes do UOL podem comentar
Ainda não é assinante? Assine já.
Se você já é assinante do UOL, faça seu login.
O autor da mensagem, e não o UOL, é o responsável pelo comentário. Reserve um tempo para ler as Regras de Uso para comentários.