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Grafiteira e sem marido: ela balança o estereótipo das mulheres no Qatar

Muna usa óculos Ray-Ban, véu e abaya enquanto grafita muros em Doha - Rodrigo Prieto
Muna usa óculos Ray-Ban, véu e abaya enquanto grafita muros em Doha Imagem: Rodrigo Prieto

Thais Hannuch

Colaboração para o UOL, de Doha

11/12/2022 04h00

Ela usa um par de óculos Ray-Ban, véu e abaya, um tipo de vestido preto que cobre braços e pernas. Nas mãos, leva um spray. Muna Al-Bader, 35, é grafiteira e engenheira da computação. Não tem marido nem planeja ter filhos. Nascida em Doha, no Qatar, grafitava muros em um dia de sol escaldante no país sede da Copa. A cena se opõe ao estereótipo de mulher muçulmana presente no imaginário do Ocidente.

Muna Al-Bader trabalha com o que ama: pintar murais nas ruas de Doha. Nem sempre foi assim. "Infelizmente, antes, no Qatar, a arte não era tão disseminada como é hoje. Por isso, segui outros caminhos."

A trajetória de Muna até se tornar artista nas ruas do Qatar ajuda a contar um pouco da história do emirado. Irmã do meio de seis filhos (quatro homens e duas mulheres), ela foi criada em uma família tradicional do Qatar. Os pais sempre gostaram de arte, mas esse não era um caminho comum quando ela terminou o ensino médio.

"Nasci e cresci numa família apaixonada por arte. Fiz e pratiquei arte desde a infância e ganhei vários prêmios de arte enquanto estava na escola, mas não dei valor a essas premiações. Pensava que era apenas mais uma matéria que eu tinha na escola."

Muna Al-Bader - Rodrigo Prieto - Rodrigo Prieto
Muna Al-Bader foi criada em uma família apaixonada por arte
Imagem: Rodrigo Prieto

Quando cresceu mais um pouco, ela teve de decidir se seguiria na trajetória artística — e acabou optando por outros caminhos. Aos 16, quis estudar na Inglaterra, mas a família não deixou. Até o início dos anos 2000, a cultura do país não permitia que mulheres viajassem sozinhas.

"Além de não ser permitido mulheres viajarem sozinhas, eles tinham medo de me deixar ir para outro país, desconhecido, sozinha."

Em 2012, quando completou 27 anos, finalmente foi para Londres para estudar engenharia da computação e então descobriu que precisava aprender a se virar como uma mulher independente.

"Não sabia fazer nada, cresci com eles fazendo tudo por mim. Fui morar na Inglaterra e meu pai passou 10 dias comigo lá até eu ter meu apartamento e aprender a me virar sozinha."

Em quatro anos, Muna conquistou dois diplomas, um em engenharia da computação pela Universidade de Huddersfield e outro por seu mestrado em administração de negócios na Universidade Anglia Ruskin, também na Inglaterra.

A vida na Europa deu a Muna amizades que ela carrega até hoje e confiança para agir.

Não sabia como lavar a minha roupa ou cozinhar, aprendi a cuidar de mim mesma, a andar de metrô e a confiar nos meus instintos e capacidades morando sozinha em Londres.
Muna Al-Bader

No Qatar, as famílias originárias da região recebem incentivos do governo, como isenção de impostos e imóveis. São, em geral, famílias muçulmanas abastadas e, de alguma maneira, ligadas à família real do emir Tamim al-Thani.

Muna - Rodrigo Prieto - Rodrigo Prieto
Muna pinta murais no Qatar; cultura passou a permitir que mulheres viajassem sozinhas
Imagem: Rodrigo Prieto

Enquanto Muna vivia suas experiências em Londres, o Qatar se transformava. "Nossa sociedade começou a se abrir e as pessoas aceitavam que as mulheres viajassem sozinhas e estudassem. Nós também estávamos mais educadas sobre como fazer as coisas do nosso jeito e mais confiantes sobre a nossa própria capacidade."

Após quatro anos fora do seu país natal, ela decidiu voltar. "Gosto de morar nos dois países. Aprendo muito e tenho amigos queridos nos dois países. É por isso que eu continuo indo e voltando do Qatar para a Inglaterra e da Inglaterra para o Qatar, mas gosto de estar com minha família e de viver com eles aqui."

Muna vive em uma casa onde moram seus pais, seus irmãos, suas cunhadas e sobrinhos. As irmãs, que já se casaram, moram nas casas de seus maridos de acordo com a tradição do país. Sobre filhos e casamento, ela é direta. "Não pretendo me casar a menos que encontre a minha alma gêmea e não vejo a minha vida com filhos, gosto muito de ser tia."

Grafite e pichação proibidos no Qatar

A arte, que fazia parte da sua infância, nunca ficou afastada de Muna. Ela continuou com projetos e exposições dentro e fora do Qatar. Recentemente, Muna foi convidada a fazer um mural na Universidade de Houston, nos Estados Unidos, como parte de um intercâmbio de culturas entre o Qatar e o país norte-americano.

Na Copa do Mundo, recebeu o convite do governo do Qatar para, em parceria com outros artistas plásticos, espalhar arte pelos muros da cidade de Doha.

No emirado, o grafite é proibido, assim como a pichação — é preciso ter uma permissão específica do governo. O Museu do Qatar e o Ashkal convidaram artistas para desenhos em áreas onde eles desejam que sejam feitas as pinturas, explica ela.

Indagada sobre como decidiu grafitar murais e dedicar-se a esse tipo de manifestação artística, tão característica das ruas das grandes metrópoles, Muna explica:

"Quando estudava em Londres fiquei muito impressionada com os murais que vi por lá. Fiquei interessada em aprender como manusear os sprays e fazer as pinturas por mim mesma. Então fiz alguns workshops de grafite e comecei a fazer meus próprios murais, errando e acertando, como todos."

Para ela, estar em contato com pessoas do mundo todo agora é uma oportunidade, e o trabalho com arte, uma forma de relaxar.

Trabalho como engenheira da computação por oito horas por dia, mas agora estou fazendo à parte meu trabalho com arte. É meu modo de aliviar a pressão que vivo usualmente no meu dia a dia.
Muna Al-Bader

Durante a Copa, o Qatar virou um museu a céu aberto. Vê-se obras de arte por toda cidade. Para a artista, a visibilidade sobre o país pode trazer bons resultados.

"Acredito que este movimento que veio com a Copa vai trazer muitas coisas boas para nós no futuro. Sinceramente desejo que possamos, como humanidade, nos unir, e entender que somos parte de um só povo, uma só nação de paz", conclui, com um sorriso no rosto.