Topo

'Fomos para o meio da nevasca': mães contam viagens ousadas com crianças

Bebel Barros e os filhos, Raquel e Beni, no Parque Nacional Grand Teton, nos EUA - Arquivo pessoal
Bebel Barros e os filhos, Raquel e Beni, no Parque Nacional Grand Teton, nos EUA Imagem: Arquivo pessoal

Glau Gasparetto e Thaís Lopes Aidar

Colaboração para Universa

20/12/2022 04h00

Verdade seja dita: quem tem filho pequeno costuma escolher roteiros com mais infraestrutura e comodidade para as viagens em família. Hotéis-fazenda, resorts, cidades com todo tipo de suporte estão entre os mais buscados.

Mas tem uma turma que prefere ir na contramão disso e investir em experiências que não são sequer cogitadas por muitas mães e pais. Para essa galera, o importante é o contato com a natureza e as vivências que os filhos terão nestas oportunidades consideradas incomuns.

A Universa, quatro mães compartilham suas histórias de viagens com crianças.

Hospedados em casa de bambu

Laís Fleury, 48 anos, empreendedora social, mãe de Alícia, 11 anos, e Lia, 10. Atualmente, a família mora em Bend, no Oregon, Estados Unidos

"Acredito muito na aprendizagem pela experiência. Amo viajar e, durante a minha vida, investi muito tempo viajando. Compartilhar uma grande paixão minha com as minhas filhas é uma alegria. O que mais me motiva é o prazer de apresentar o mundo para elas.

Sempre acreditei que elas são capazes de tolerar e absorver o diferente e o inusitado. É uma forma de aprendizagem e de ampliar perspectivas também. Se deixasse de viajar por elas, ficaria triste, e acho importante estar no meu melhor para conseguir oferecer isso às minhas filhas.

Também acredito que viajar nos ajuda a formar valores, a ampliar nossa visão de mundo, lidar e apreciar a diversidade, além de criar recursos internos para lidar com as adversidades.

Nós gostamos muito de viajar para lugares com natureza exuberante e acreditamos que a natureza é o que podemos oferecer de melhor para as crianças. Então, escolhemos destinos já partindo do princípio de que vai ser bom para elas também.

Laís Fleury - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Laís e as filhas Alícia, de 11 anos, e Lia, de 10
Imagem: Arquivo pessoal

Caso seja um ambiente um pouco mais desafiador, enxergamos como uma oportunidade para elas já começarem a desenvolver recursos internos para lidar com os desafios da vida. Isso é algo que vai capacitando as duas para se tornarem mais resilientes. Mas digo dentro de uma perspectiva de um risco saudável, não sendo algo que ameaça a saúde ou a vida delas, por exemplo.

Entre as viagens que marcaram está quando fomos para Tatajuba, no Ceará. Lia não tinha nem um ano, não andava, e a Alícia tinha dois anos. A logística para chegar até lá era extensa: avião, 8 horas de ônibus e ainda um barco.

É fácil querer desistir com duas crianças tão pequenas, sozinha
Laís Fleury

Convidei uma amiga para ir comigo, me ajudar, e fomos. Apesar de difícil para chegar, a experiência foi incrível. Teve muito contato com a natureza, elas brincando com as crianças locais. Não faltaram voluntários da comunidade para me ajudar com as meninas e a Lia nunca tomou tanto banho de bacia.

Quando elas tinham cinco e quatro anos, viajamos em família para Bali, na Indonésia. A primeira preocupação era com o tempo de voo e de conexão nos aeroportos, muito longos. Uma das estratégias foi dar a elas um tênis de rodinha. Enquanto esperávamos no aeroporto, elas brincavam de andar de "patins", gastando energia e se divertindo.

Outro desafio era a alimentação da Ásia, muito diferente da nossa e temperada. Nós acreditamos que as crianças devem se adaptar com o que tem disponível para comer. No início da viagem, o arroz branco ajudou muito, depois elas foram experimentando as comidas locais e ajustando o paladar.

Laís Fleury - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Laís Fleury com as filhas, Alícia e Lia, e o marido, Átila, na Indonésia
Imagem: Arquivo pessoal

Lembro também que ficamos hospedadas em uma casa feita de bambus, em uma vila, que não tinha paredes e era toda aberta. O banheiro era seco. No início, a Lia chorava porque o banheiro era muito diferente e ela não gostava do cheiro. Com o tempo, a necessidade a fez se adaptar e lidar com o espaço.

Ouvir comentários desnecessários dos outros diante das nossas viagens é muito comum. Não reajo, porque acho que a maternidade é muito particular e cada um sabe o que consegue ou não bancar. A maternidade exige muito. Então, não acho que nem é certo ou errado: é o que cada um considera que é importante e consegue fazer".

Cinco dias morando em um barco

Bebel Barros, 50 anos, engenheira florestal, mora em Carapicuíba (SP). É mãe de Raquel, 14 anos, e Beni, 9 anos

"Para mim, viagens com as crianças sempre foram momentos de pura satisfação. O simples fato de vê-los brincando num rio, acampando, subindo um pico, é motivo de imensa alegria. Desde que nasceram, o planejamento das nossas viagens em família é sobre o que vai ser legal para os dois [filhos] e para nós, como família.

Quando eram bem pequenos, procurávamos lugares mais próximos, em que o tempo de deslocamento fosse curto. À medida que cresceram, passamos a gastar mais tempo para chegar ao destino. Também sempre procuramos ficar um tempo prolongado no lugar para ser um período mais estendido, sem pressa.

Estados Unidos - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Bebel Barros com os filhos Raquel e Beni no Zion National Park, nos Estados Unidos
Imagem: Arquivo pessoal

Escolhemos os roteiros com base na distância, no clima que vai fazer e nos custos. Outros fatores são: se as caminhadas são adequadas para a idade deles, se há áreas de acampamento e a qualidade delas e diferentes tipos de atividades — escalada, cavernas, rios.

Quando as crianças eram pequenas, fomos durante muitos anos para o Parque Estadual Intervales, em São Paulo. Esse parque faz parte de um contínuo de Mata Atlântica muito extenso e protegido, com muita vida selvagem. É comum encontrarmos cobras.

Quando o Beni tinha lá seus 4 ou 5 anos, estava chateado porque não tinha visto nenhuma — e a Raquel se lembrava de ter visto algumas desde que tinha nascido. O Flávio, meu marido, colocou o Beni na bicicleta e disse: 'É hoje que você vai ver uma cobra'. Pedalou por umas duas horas e eles realmente encontraram duas.

As crianças aprenderam a ver esses encontros não com medo ou razão para demonstrar agressividade, mas como uma celebração da beleza que isso representa. Aprenderam a ter reverência e respeito pelas outras formas de vida.

Em 2017, fizemos uma viagem de carro pelos Estados Unidos, acampando em parques nacionais. As crianças queriam muito ver neve pela primeira vez. Quando percebemos que iria cair uma nevasca, dirigimos bem para o centro dela.

Encontramos um acampamento e passamos a noite ali, debaixo de muita neve, em nossa pequena barraca, a uma temperatura de -13 °C. É importante dizer que tínhamos bons equipamentos para suportar o frio.

As crianças amaram, brincaram muito com a neve e lembram com muita alegria dessa aventura
Bebel Barros

Fizemos uma viagem relativamente barata, viajando com milhas e acampando e cozinhando em áreas públicas a maior parte do tempo. Para elas, foi uma aventura maravilhosa. Para nós, foram dias de muita conexão e vínculo entre a família e com a natureza.

Outra viagem muito especial foram os cinco dias que passamos num barco no Rio Tapajós. 'Morar' nele por alguns dias, dormir em redes e experimentar a grandiosidade da região amazônica foi uma experiência incrível para todos.

Bebel Barros - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Bebel Barros com a filha Raquel no Rio Tapajós
Imagem: Arquivo pessoal

Acho que os lugares que visitamos são áreas incríveis e pouco conhecidas da maioria dos pais, mas não deveria ser assim. Nossos destinos são os maiores tesouros do nosso país (e de outros países também): os parques estaduais e nacionais.

O que a gente procurou adaptar foi como visitar esses lugares, sempre pensando numa progressão para que as crianças tivessem experiências positivas e quisessem fazer mais daquilo — caminhar mais, escalar mais, remar mais, acampar mais.

Minha principal motivação é que eles tenham a chance de se apaixonar pela natureza. Acho que esse contato pode ser um aperitivo ou um banquete e nossas viagens são oportunidades de vivenciarmos a vida ao ar livre de uma forma mais intensa, remota e longa.

Muitas vezes, as pessoas acham estranho expor uma criança à chuva ou à falta de estrutura, como uma cozinha ou um banheiro, a uma atividade física muito forte ou ainda quando contamos que encontramos alguma cobra.

Acho que nossa cultura preconiza que devemos proteger os filhos o tempo todo, mas, na verdade, eles anseiam por ir além, por experimentar o que ainda não dominam, por testar seus limites ao lado de pessoas nas quais confiam".

Trilha com a bebê no 'canguru'

Natasha Pinelli, 35 anos, jornalista, mãe de Aurora, 2, de São Paulo

"Sempre fui do time que adora viajar. Acredito que é uma oportunidade para aprender; é preencher a vida de casos e experiências que te marcam e te transformam. Me casei com uma pessoa com essa mesma visão e começamos a traçar roteiros que, para muitos, acaba fugindo do óbvio.

Para nós, ter filhos não poderia ser um impeditivo para isso e muitas outras coisas que gostamos de fazer. Claro que, com criança, nada é igual, mas é possível — basta adaptar. Assim fazemos, desde quando Aurora nasceu. Para mim, é muito gratificante proporcionar essas experiências a ela.

Nas nossas escolhas, ela também é ouvida. Não forçamos nada e tudo é feito de maneira combinada e natural. Se não quer entrar na água, não entra; se não quer pegar tal coisa, não pega.

3 - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Natasha Pinelli na Pedra do Altar, no Parque Nacional Itatiaia, com a filha Aurora
Imagem: Arquivo pessoal

A primeira viagem foi para Gonçalves (MG), quando ela tinha dois meses e foi bem tranquila. Pegamos um Airbnb e, em um dos dias, fizemos uma trilha simples e movimentada até o topo de uma pedra, com ela no canguru e, também, na companhia da minha mãe.

A primeira trilha mais longa foi a do Circuito das Cachoeiras, do Ribeirão de Itu, em Boiçucanga, no litoral norte de São Paulo. Era uma trilha que a gente já conhecia bem, inclusive a fizemos quando estava grávida.

Já a levamos para trilhas na Serra da Cantareira e uma parte da Serra do Lopo, na região de Joanópolis, e Praia Brava, também em São Sebastião. A mais longa foi o Circuito dos Lagos, no Parque do Itatiaia, que terminou com a subida no cume da Pedra do Altar. Foi uma experiência muito incrível e fiquei muito orgulhosa por termos proporcionado isso para ela.

As trilhas são momentos de reforçar nossos laços: a gente conversa, canta, para, vê bichos, plantas. No final do dia, também gosto de relembrar com ela tudo que fizemos nesses dias especiais. A gente fica renovado e cheio de esperanças nessa nova geração que vem por aí.

Acredito que as experiências que ela teve, até hoje, contribuíram para diversos aprendizados, conquistas e desenvolvimento. Que seja, também, uma experiência de respeito e de entender os limites da própria natureza.

Natasha Pinelli  - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Natasha Pinelli com Aurora no Parque Estadual da Serra da Cantareira
Imagem: Arquivo pessoal

No último Ano Novo, fomos com um grupo de amigos para o Saco do Mamanguá, no Rio de Janeiro, um lugar só acessível de barco, sem luz elétrica nem internet. A casinha era rústica, sem vidros nas janelas por questão de ventilação. Quando falamos assim, parece que é o fim do mundo, mas com planejamento tudo funcionou e ela se divertiu muito.

Quando escolhemos um destino para ir com a Aurora, temos que estar 200% seguros que será adequado para ela, seja para fazer uma trilha, viajar com os amigos ou a família. Nunca vamos expô-la.

Sei que, para muitas pessoas, nossas escolhas fogem ao padrão, mas até me acho conservadora
Natasha Pinelli

Também respeito muito os meus próprios limites. Na Serra do Lopo, só fizemos até certo ponto porque não estava legal e, quando aceitamos o nosso limite e decidimos voltar, tudo fluiu tão bem, foi tão gostoso.

É sempre uma decisão em conjunto, em que ambos precisam estar completamente seguros. Temos destinos dos sonhos, mas ainda não nos sentimos prontos para enfrentar com ela tão pequena".

'Se tem crianças lá, meus filhos podem ir'

Marcela Tenório, 30 anos, empresária de São Sebastião (SP). É mãe da Gabriela, 3 anos, e Marina, 4 meses

"Na primeira gravidez, fiquei cinco meses viajando pela América do Sul em uma expedição de 4x4, morando em uma barraca somente com o meu companheiro. Pude ver mães do Peru, Bolívia, Chile, Argentina, em desertos, salares, vales nevados e lugares tão inóspitos que construí uma visão de que podemos ser mães em qualquer lugar do mundo.

Nunca me veio à cabeça que existiam destinos impraticáveis, que não pudessem ser aproveitados com bebês. Em toda situação difícil, me questiono se estou no lugar certo. Acho que, quando saímos do nosso centro da razão, vem o questionamento. Nas viagens não é diferente.

Quando temos algum desafio muito grande, penso se deveria estar lá acompanhada de um bebê, ou criança, mas quando vem a calmaria, logo retomo meu centro e lembro que os desconfortos existem em qualquer ambiente, até mesmo dentro de casa.

4 - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Marcela Tenório acampando com as filhas Gabriela e Marina
Imagem: Arquivo pessoal

Começamos a compartilhar essas experiências no Instagram para amigos e familiares acompanharem as viagens, e, de repente, percebemos que estávamos transformando vidas — num sentido profundo e grandioso mesmo!

Estávamos inspirando casais a viverem outro tipo de turismo e de lazer, trazendo natureza para infâncias, empoderando famílias e pais para fazerem mais atividades ao ar livre com os filhos.

Hoje, a intenção é mostrar que existem outras formas de viver e viajar com os filhos. Buscamos ensinar crianças (e adultos!) a lidar com adversidades, entender que não se come o que se ama todo dia, não se tem conforto o tempo inteiro, não se faz só o que gosta.

Em todo canto do mundo existem crianças e, se existem crianças lá, meus filhos podem ir. Ninguém precisa replicar a rotina, porque viajar é sair da rotina, é ampliar o mundo, trazer o melhor possível para um novo ambiente.

Os perrengues não são tantos como imaginam, mas estamos sempre lidando com desafios. Alguns são mais básicos, como xixi no carro, esquecer das fraldas num passeio de um dia, aquela chuva repentina com a janela aberta.

El Calafate - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Marcela Tenório com a filha Gabriela em El Calafate, na Argentina
Imagem: Arquivo pessoal

Apesar de algumas situações serem mais difíceis de superar, como pneu furado e macaco quebrado em uma estrada deserta, febre de 39 ºC numa ilha na Colômbia, fazemos um gerenciamento de risco bem cuidadoso, então, os perrengues não passam de imprevistos ou surpresas que já estamos preparados para lidar.

Os comentários desnecessários que recebemos são inúmeros! Antes, me sentia insegura e, de certa forma, o tom era como se estivesse negligenciando a minha filha
Marcela Tenório

Hoje, respiro fundo e não tento convencer de que é possível e saudável. Só me posiciono explicando que esse ambiente é tão familiar para nós que estar fora de casa nos deixa mais confiantes do que estar dentro dela".