Janja quer 'ressignificar papel de primeira-dama'. Mas até onde pode ir?
Ao contrário das antecessoras —as duas últimas ainda mais conservadoras, com perfil na linha "bela, recatada e do lar"— Rosângela da Silva, a Janja, que assume no dia 1º de janeiro o posto de primeira-dama, tem uma trajetória profissional e acadêmica robusta, independente do projeto político do marido. Já disse, inclusive, que vai "ressignificar o conteúdo do que é ser uma primeira-dama".
Mas até onde ela conseguirá mudar um cargo tão engessado na história política brasileira?
"É muito difícil romper com as violências de gênero estando nesse cargo, especialmente com a cobrança para seguir um padrão estético e para ocupar um lugar específico um tanto atrás do presidentes. O papel de primeira-dama é tão machista que você não escolhe ser ou não", afirma a historiadora Dayanny Deise Rodrigues, que se debruça sobre a história do primeiro-damismo —termo cunhado por ela em seus estudos— no país.
Em sua tese de doutorado, "'Primeiro-Damismo' no Brasil: uma História das Mulheres na Cultura Política Nacional (1889-2010)", defendida em 2021 pela UFG (Universidade Federal de Goiás), ela estudou a atuação das mulheres dos presidentes e ao conjunto de ações realizadas por elas.
A Universa, Dayanny analisa as expectativas que recaem, agora, sobre Janja —uma primeira-dama militante, pop, mais informal, e muito ligada a questões progressistas, como gênero e meio ambiente— especialmente frente à sua antecessora, Michelle Bolsonaro
"Para além de ela ser muito diferente da Michelle, as expectativas são imensas. Janja tem falado sobre exploração sexual infantil, já anunciou que vai atuar em prol dos direitos das mulheres. Será muito cobrada em relação a isso porque são pautas importantes."
O papel de Janja no governo Lula
Historicamente, o que se entende como função das mulheres dos presidentes é trabalhar na área de assistência social, participar e organizar eventos da Presidência e fazer aparições oficiais ao lado do marido. Apesar de o novo governo ter um perfil progressista e de Janja prometer seguir nesta direção, os primeiros sinais da atuação dela não são dos mais disruptivos nem fogem à regra.
Durante a campanha, ela assumiu o papel de cuidar da saúde do marido —por diversas vezes foi vista levando água para ele durante discursos e pedindo que ele descansasse, por exemplo; e, no processo de transição de governo, coube à nova primeira-dama a função de coordenar os preparativos para a festa da posse. Nada muito diferente das tarefas como organizar recepções e manter a casa arrumada, exercida pela maior parte das 37 primeiras-damas que vieram antes dela.
"Claro que a cerimônia de posse é importante, mas, se eu estivesse na equipe de transição do governo, colocaria a Janja em uma comissão técnica, porque ela tem perfil para isso. Mas não, ela foi cuidar da festa da posse, arrumar a casa —essa divisão sexual do trabalho é explícita e me preocupa", opina Dayanny.
"Ela pode ter um currículo maravilhoso, mas, no momento de decidir quem vai cuidar da festa, é natural pensar no nome dela porque sempre foi assim".
Em sua pesquisa, Dayanny dividiu a prática do primeiro-damismo em duas formas de atuação: estratégica, quando a esposa do presidente atua totalmente alinhada e submetida ao projeto político do governo encabeçado por uma figura masculina, sem que de fato se destaque ou atue em causa própria; e tática, quando essas mulheres conseguem transcender, construindo um protagonismo próprio.
O único exemplo do segundo caso no Brasil, até hoje, foi Ruth Cardoso, primeira-dama entre 1995 e 2003. Ruth criou o programa Comunidade Solidária e se dedicou ao fortalecimento do terceiro setor no país, em que a sociedade civil atua em prol de políticas públicas. A expectativa é que Janja atue da mesma forma.
Michelle Bolsonaro, afirma Dayanny, cumpriu o primeiro-damismo estratégico, servindo totalmente aos interesses do governo, por exemplo, como ferramenta de aproximação entre Jair e as eleitoras após declarações sexistas do presidente, além de atuar fortemente no meio evangélico para aproximá-lo do marido.
Duas Michelles diferentes
A atual primeira-dama, que antecede Janja no posto, foi a primeira esposa de um presidente a discursar na cerimônia de posse e fez isso antes do marido, inclusive. Apesar de sinalizar que teria uma atuação importante no governo, passou a maior parte do governo apagada, atuando apenas ao lado da ministra Damares Alves, da Mulher, Família e Direitos Humanos.
Só voltou a aparecer com força na campanha à reeleição, e com um visual bastante diferente de como começou o governo. "São duas Michelles diferentes", percebe a historiadora.
"Na campanha para eleger Bolsonaro presidente pela primeira vez, ela aparece em menos, mas com a função de mostrar que ele é um cara casado e viril. Nos quatro anos seguintes, a atuação dela foi muito pontual, sempre ligada à pauta do cuidado com as famílias e a defesa das mulheres cristãs, deixando claro que as mulheres em geral não cabiam no governo Bolsonaro", afirma.
Em 2022, durante a campanha para a reeleição do presidente, a conjuntura era diferente: uma campanha mais difícil, de embate acirrado entre duas ideias de Brasil —e as primeiras-damas tiveram que entrar no jogo.
"Janja entrou para endossar a imagem do Lula, que já tem certa idade, como um cara jovem que ainda tem disposição, é engajado e amoroso. Do outro lado, Michelle entra para colocar panos quentes em impasses do marido com o público feminino, destacando que ele é um bom marido, um bom pai."
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