Caça às 'bruxas' brasileiras: como mães expulsaram prostitutas de Portugal
A desconfiança de que os maridos levavam uma vida dupla começou devido ao horário. Em vez de regressar para casa de tardezinha, passaram a se demorar por horas na rua, quase sempre adentrando a madrugada.
Depois veio o cheiro nas camisas. Já não era mais o odor a cigarro ou o suor, típicos de um fim de expediente, mas uma mistura de fragrâncias: perfumes florais e adocicados, aromas alcalinos suspeitos. Cheiro de sexo.
Elas nem precisavam de novas confirmações para as dúvidas; mas, de uma hora para outra, os sujeitos ainda começaram a se preocupar com a higiene das roupas. Se, até então, usavam a mesma vestimenta durante toda a semana, sem ligar para as manchas de gordura no tecido, do nada passaram a exigir que as esposas lhes providenciassem camisas limpas e bem passadas todos os dias.
Aumentaram o serviço delas e, em contrapartida, reduziram o dinheiro, que passou a ser gasto nas noitadas. Dependentes financeiramente dos cônjuges, elas precisaram cortar despesas em casa. Chegaram ao limite de comprometer a alimentação das crianças. Houve quem dissesse ter passado fome. Exaustas, sobrecarregadas e solitárias, elas se revoltaram. Mas não contra os maridos.
Em maio de 2023, completam-se 20 anos do episódio "mães de Bragança", como ficaram conhecidos os conflitos que colocaram, de um lado, esposas portuguesas e, de outro, prostitutas brasileiras. No centro da confusão, incólumes e frequentemente retratados como vítimas —ora da suposta falta de atrativos das esposas, ora dos encantos irresistíveis das trabalhadoras do sexo— os maridos.
Sete clubes de strip-tease inaugurados ao mesmo tempo
Bragança é a principal cidade das terras de Trás-os-Montes, ao norte de Portugal, uma pequena localidade de 35 mil habitantes, em cuja paisagem se avistam muralhas, castelos e templos medievais. Em 2003, ano daqueles acontecimentos, ainda menos gente vivia lá: 27,6 mil pessoas, muitas delas trabalhando nas atividades agrícolas.
Os arranjos familiares convencionais —no geral, homens no trabalho fora de casa, mulheres cuidando dos serviços domésticos e dos filhos— seguiam com aparência de intocáveis até o começo do ano, quando empresários da pacata vida noturna bragantina inauguraram sete clubes de strip-tease na cidade, além de pequenos espaços conhecidos como "casas de alterne", onde os clientes podiam desfrutar dos serviços das prostitutas. E as trabalhadoras tinham algo em comum: eram quase todas brasileiras. Algumas delas, ilegais e vítimas de tráfico de pessoas.
Mulheres acusadas de "enfeitiçar" pais de família
O que se comentava em toda a Bragança era que, desde a chegada das brasileiras para os clubes e boates da cidade, uma espécie de "surto psicótico" fora desencadeado entre os pais de família locais. Dizia-se que as prostitutas, dotadas de técnicas de feitiçaria próprias de seu país, envolveram os homens de maneira tal que eles não conseguiam agir com a razão. Seduzidos, abandonaram as famílias, largaram os filhos à míngua, entregaram-se à luxúria.
Foi quando quatro esposas resolveram agir. Elaboram um manifesto —no qual se apresentavam como "mães de Bragança— pedindo providências à prefeitura e à polícia para acabar com aquilo que, nas palavras delas, constituía uma "onda de loucura". No documento, atribuíam a culpa pela insanidade às "prostitutas brasileiras que nos últimos tempos invadiram a cidade", afirmando que, caso nada fosse feito pelas autoridades para combater a "degradação dos valores humanos na região", caberia a elas fazer justiça "com as próprias mãos". Subscrito por mais de cem moradores de Bragança, o documento foi encaminhado para a imprensa.
Esposas foram ridicularizadas
No final de abril, a notícia de que as esposas de Bragança haviam declarado guerra às prostitutas brasileiras estava estampada nos jornais de Lisboa. Talvez não contassem com o fato de que seriam ridicularizadas. Nos jornais, bem como nos programas de rádio e televisão, o tom era jocoso. Comentava-se que os maridos, afinal, procuravam as brasileiras, simpáticas e cheirosas, porque ao voltar para casa encontravam esposas portuguesas recendendo a gordura, mal-humoradas e, desde que haviam se tornado mães, sem tempo nem paciência para os homens.
Logo a história se espalhou e a revista americana "Time" enviou uma equipe a Portugal para investigar o caso. Quando a história foi finalmente publicada, em outubro —numa reportagem de capa, com oito páginas, intitulada "When the meninas come to town", ou "Quando as meninas vêm para a cidade"—, muitas brasileiras já haviam sido deportadas. Ou, sentindo-se ameaçadas, haviam cruzado a fronteira com a Espanha e passado a atuar no país vizinho.
As primeiras a fugir foram as travestis e as mulheres trans, mais visadas entre os moradores da cidade do que as prostitutas cisgênero. Mulheres que haviam sido privadas do único meio de subsistência. "Quando o mercado de trabalho fecha as portas para as travestis, a prostituição abre. É um lugar de precariedade e violência, mas é o espaço que nos permite exercer o direito de existir", explica a escritora e pesquisadora Amara Moira, autora do livro "E se Eu Fosse Puta" (Hoo Editora).
"Volta pra tua terra"
"Houve inúmeras consequências negativas para as trabalhadoras do sexo. E não apenas para as brasileiras", diz Cíntia*, prostituta portuguesa que, na época, atuava em Bragança. "O trabalho diminuiu. Nas ruas, passamos a ouvir palavras ofensivas, a ser vistas como ameaça", conta ela, que estava sempre entre as colegas brasileiras e era confundida com uma.
"Não há como analisar esse episódio sem considerar a xenofobia", afirma a escritora pernambucana Manuella Bezerra de Mello, coordenadora do Maria Filipa, um coletivo feminista de mulheres brasileiras residentes em Portugal. O combate aos estereótipos em torno das brasileiras em Portugal, usualmente vistas como disponíveis ao sexo ou melhores de cama do que as portuguesas, é um dos mais desafiadores entre as ativistas.
"O episódio de Bragança é uma representação da presença hegemônica da ideia de patriarcado na sociedade contemporânea", avalia a escritora, que faz doutorado em literatura na Universidade do Minho, na cidade de Braga, e organizou antologias de contos e poesias sobre xenofobia. "De um lado, temos as 'Marias', puras; e, de outro, as 'Evas' malignas", numa concepção de mundo totalmente vinculada à figura do homem", explica.
Como resultado da pressão das "mães de Bragança" para que as autoridades combatessem aquele "flagelo social", casas de strip-tease foram fechadas e empresários da noite, presos. "Uma onda de pânico instalou-se entre as trabalhadoras", afirma Maria Andrade, ativista do Movimento das Trabalhadoras do Sexo e cofundadora do Grupo Partilha de Vivência da zona norte do país. As duas entidades atuam em prol da descriminalização da prostituição. Em Portugal, a atividade não é crime —o favorecimento, sim.
Expulsão de prostitutas seguida por aumento da violência doméstica
As mães, em tese, ficaram felizes com o desfecho do episódio. Mas, na prática, a situação fugiu ao controle delas. Pesquisadores que se debruçaram sobre o tema descobriram que, nos meses subsequentes ao combate à prostituição, registrou-se aumento nos casos de violência doméstica —sem o escape às "casas de alterne", os maridos passaram a voltar-se contra as esposas, a quem culparam pelo fim da diversão. Houve, ainda, relatos de homens que decidiram acompanhar as amantes em suas fugas para cidades e países vizinhos, iniciando nova vida, longe das famílias.
Entre os estudiosos dos temas vinculados à migração, xenofobia, trabalho sexual e feminismo em Portugal, há um consenso de que os eventos em torno de Bragança ganharam uma proporção desmedida devido à mídia. Em 2019, o episódio inspirou uma série da RTP (Rádio e Televisão de Portugal) intitulada "Luz Vermelha", estrelada pela atriz brasileira Mariana Badan. Ela interpretou Bruna, uma imigrante forçada a se prostituir.
Longe dos holofotes, outras "mães de Bragança" continuam a se repetir, 20 anos depois, em diferentes pontos do país. Se não do mesmo modo, movidas pela mesma essência: a ideia de que mulheres brasileiras são capazes de levar à perdição homens portugueses. Retrato disso é o perfil "Brasileiras Não se Calam", do Instagram, que reúne relatos de imigrantes lidando com situações de xenofobia. Em um post de 5 de fevereiro, uma brasileira narrou a seguinte sequência de frases ouvidas no trabalho, de uma colega: "Você sabe que brasileiras têm má fama, né? São as rouba-maridos".
*Nome trocado a pedido da entrevistada
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