'Estupro é arma de guerra mais barata que bala de AK-47', diz jornalista
A jornalista britânica Christina Lamb cobre guerras há 35 anos. Mas foi em 2022, ao escrever um livro sobre como o estupro é usado como arma em conflitos internacionais, que disse ter escutado as histórias mais chocantes da sua carreira.
Como a de uma adolescente yazidi, denominação de uma minoria religiosa perseguida pelo Estado Islâmico, que ouviu os gritos de uma menina de 10 anos, no quarto ao lado, sendo estuprada todas as noites por um combatente radical. Ou das várias mulheres de Bangladesh que contaram ter sido amarradas em árvores e violentadas por vários homens ao mesmo tempo. As histórias fazem parte do livro "Nosso Corpo, Seu Campo de Batalha", recém-lançado pela Companhia das Letras.
Em conversa com Universa por ligação de vídeo, Christina diz que não vê esperança em órgãos internacionais, como a ONU, mas nas próprias vítimas —e em alguns homens que as ajudam— e na coragem que têm em contar o que aconteceu. Acredita, porém, que o tema tenha ganhado mais atenção com a guerra da Ucrânia e as constantes denúncias de que tropas russas têm estuprado as mulheres do país.
Leia a entrevista abaixo:
Como o estupro é usado como arma de guerra?
O estupro é uma arma de guerra muito eficiente e muito barata, custa menos do que uma bala de AK-47 [arma usada em guerras]. Se você quer expulsar o inimigo de uma vila e fazê-lo ir para a outra, ao estuprar as mulheres e crianças, está humilhando os homens, fazendo com que eles sintam que não podem protegê-las. Nesses casos, as pessoas fugirão.
No livro, você diz que há uma "epidemia" de casos de violência sexual em conflitos. O que explica isso?
Os casos aumentaram muito. Talvez as mulheres estejam falando mais sobre isso, estejam mais abertas, mas também acho que está acontecendo em uma escala muito maior. Muitas coisas aconteceram nos últimos dez anos. O povo yazidi, por exemplo, foi tirado de suas casas no Iraque pelo Estado Islâmico, são cerca de 7.000 mulheres capturadas. Na Nigéria, em 2014, centenas de garotas foram tiradas de dentro das escolas e jogadas na floresta. Foram sequestradas por guerreiros do Boko Haram [grupo radical islâmico]. Em 2017, em Bangladesh, mulheres e garotas foram sequestradas em Burma. Toda mulher com quem conversei tinha uma história de ser capturada, amarrada em uma árvore e estuprada por vários homens. E, agora, há a guerra da Ucrânia.
Uma vítima que você entrevistou te questionou sobre como o relato dela poderia fazer alguma diferença. Qual a sua resposta?
Que as pessoas precisam saber o que está acontecendo e nessa escala, com tantos casos. Percebi que mesmo eu, sendo correspondente de guerra há mais de 35 anos, não sabia disso. Então, como as outras pessoas iriam saber? Houve quem me dissesse que ninguém queria ler sobre isso. Mas o trabalho do jornalista é, muitas vezes, fazer os outros se sentirem incomodados, ou as coisas não mudarão. Tento espalhar a consciência e fazer as pessoas pensarem. Dezenas de milhares de mulheres pelo mundo estão sendo estupradas todos os anos em guerras. E nada acontece.
Qual foi a história mais marcante que ouviu?
Cada história que ouvi é única. E sempre senti que não poderia ouvir nada pior do que o que havia escutado, e então alguém me contava algo ainda mais chocante. Mas uma em particular me vem à mente. Uma garota de 16 anos, yazidi, que foi sequestrada pelo Estado Islâmico, contou que a pior noite de sua vida foi quando levaram uma menina de 10 anos para um quarto ao lado do que essa garota que entrevistei estava. Ela ouvia essa menina chorando todas as noites e chamando a mãe. Foi muito difícil para ela me contar isso, e eu dizia a ela que não precisava falar mais, que nós poderíamos parar a entrevista. Mas ela estava furiosa e disse que não, que queria continuar para que ninguém possa dizer que não sabia o que estava acontecendo. Isso realmente me impressionou.
E qual te deu esperança?
Fiquei muito comovida por algumas pessoas mais velhas que entrevistei, que formaram um grupo de avós e bisavós nos anos 1980, nas Filipinas, conhecidas como as "Lolas". Elas foram sequestradas ainda crianças durante a Segunda Guerra Mundial, nos anos 1940, por forças japonesas, e se tornaram o que se chamava de "mulheres de conforto". Foram estupradas várias vezes por soldados japoneses, cerca de 50 vezes por dia. Nunca falaram sobre o que passaram desde que foram libertadas, no fim da guerra. Mas, nos últimos anos, depois de uma delas, Rosa, dar seu relato em uma rádio, outras começaram a falar sobre isso. Elas querem justiça, não no sentido de condenar os agressores, já que muitos devem estar mortos, mas um reconhecimento formal do que aconteceu com elas. A dignidade dessas mulheres contando suas histórias é tão tocante que acho que devemos ouvi-las e tentar mudar essa situação por elas.
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Você critica o fato de homens se tornarem heróis de guerra, mas mulheres não terem o mesmo reconhecimento. Acredita que, um dia, elas também serão vistas como heroínas?
É o que deveria acontecer.
As mulheres são as pessoas que mantêm a vida na comunidade. Quando o conflito está acontecendo e tudo se torna um inferno, são elas que estão, geralmente, tentando alimentar os filhos, educá-los, protegê-los. Mas não temos estátuas homenageando o que mulheres fizeram na guerra, só de homens.
Algumas frases ouvidas pelas vítimas que você entrevistou, como "sei que você está gostando", são ditas por agressores sexuais em diferentes lugares do mundo. O estupro em guerras segue a mesma lógica dos outros casos?
O estupro é sempre um crime em que a vítima vai sentir que fez algo de errado, que de alguma forma foi sua responsabilidade, que ela deveria sentir vergonha. Isso acontece na guerra e na sociedade como um todo. Não tem a ver com sexo, tem a ver com exercer poder sobre as pessoas.
Como foi para você, pessoalmente, ter ouvido essas histórias?
Foi o livro mais difícil que já escrevi [Christina tem 14 obras publicadas]. Mas penso que, se foi difícil para mim, se é também para as pessoas que lerem as histórias, não será nada comparado com o que essas mulheres passaram e com a valentia que tiveram ao contar o que viveram. Além disso, há muitos casos de resiliência delas. No Congo, por exemplo, há um lugar que ajuda sobreviventes de estupro, que tenta curá-las do trauma oferecendo meditação, aulas de dança, de arte, conversando sobre o que aconteceu. Lá, senti que há esperança para a humanidade.
Algum estupro já foi punido como crime de guerra?
Sim. Uma vez, por um caso em Ruanda [Jean-Paul Akayesu, ex-prefeito da comunidade de Taba, no centro de Ruanda, foi condenado a prisão perpétua em 1998]. Foi a primeira condenação da história por estupro. As mulheres que testemunharam foram muito ameaçadas, mas elas consideraram importante prestar depoimento. Quando souberam da condenação, me contaram que dançaram com alegria, achando que seria o fim de tudo que estava acontecendo com as mulheres nas guerras. O triste é que os estupros em guerras não pararam, pelo contrário, acontecem hoje em ainda maior escala.
Como órgãos internacionais deveriam agir?
Primeiro queria dizer que é imperdoável que a comunidade internacional não esteja fazendo nada em relação a esse assunto. Se tivéssemos mais mulheres representadas nas negociações dos órgãos por paz e justiça, nos fóruns globais, acredito que isso poderia ser diferente. O fato é que a ONU criou uma resolução há mais de 20 anos dizendo que precisávamos fazer algo para reduzir a violência sexual em conflitos, mas nada mudou. Agora, com a guerra da Ucrânia, o assunto ganhou mais atenção. Espero que, com isso, o cenário possa ser diferente.
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