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Médico 'sádico e racista' criou bico de pato, mas exame pode ser mais fácil

Espéculo vaginal é um instrumento utilizado no exame de papanicolau - Getty Images
Espéculo vaginal é um instrumento utilizado no exame de papanicolau Imagem: Getty Images

Larissa Darc

Colaboração para Universa

06/03/2023 04h00

Deitar em uma maca, afastar as coxas e colocar as pernas em suportes metálicos pode ser desconfortável. Mas, em muitos casos, o que mais causa aflição e desconforto para quem realizará um exame de papanicolau é um instrumento utilizado na hora da coleta: o espéculo.

Apelidado de 'bico de pato', ele é usado durante o exame para afastar as paredes vaginais para que os médicos e médicas possam fazer a coleta da escamação do colo do útero.

É muita gente sentindo dor em um procedimento comum. Isso, sem dúvida, nos dá um alerta de que este instrumental precisa ser reavaliado em todos os seus aspectos ergonômicos, de formas e funções
Samanta Teixeira, pesquisadora de design pela Unesp

Teixeira é responsável pelo estudo "Problemáticas de Design do Espéculo Vaginal: Estudo sobre Irregularidades do Instrumento Ginecológico" que mostrou que:

  • 84,2% das mulheres entrevistadas declararam que já sentiram algum tipo de desconforto no papanicolau.
  • 31,5% sentiram a escala de dor entre 7 a 8 durante o exame em escala de 0 a 10
  • 67% declararam sentir desconforto médio (escala 5) a extremo (escala 10).
  • Pouquíssimas mulheres disseram sentir pouco ou nenhum desconforto com o uso do espéculo.
Exame é fundamental para detectar sinais do câncer de colo de útero - Getty Imagens - Getty Imagens
Exame é fundamental para detectar sinais do câncer de colo de útero
Imagem: Getty Imagens

O papanicolau é fundamental para detectar sinais do câncer de colo de útero, condição responsável por 265 mil óbitos por ano no mundo tanto para mulheres cis quanto pessoas transmasculinas.

No entanto, o espéculo usado hoje é um instrumental obstétrico desatualizado —e é aqui que pode estar parte do problema.

Ele é usado de maneira parecida desde o ano 79 d.C, mas foi no final dos anos 1800 que foi perpetuado pelo médico estadunidense James Marion Sims (1813-1883).

Seu protótipo foi feito às custas de experimentações e cirurgias sem anestesia em mulheres escravizadas afro-estadunidenses.

O controverso protótipo bruto de Sims, a colher de molho entortada, permanece culturalmente nos espéculos atuais vigentes, quer dizer, não foram desenvolvidos de acordo com um processo de design formal"
Samanta Teixeira

Um dos casos mais conhecidos sobre a atuação do médico ocorreu com Anarcha Westcott, uma jovem escravizada de 17 anos que sofria de raquitismo e, por isso, tinha a pélvis desfigurada.

Após três dias sofrendo com a dor de um parto complicado pela condição de saúde que ela carregava, foi submetida como cobaia em experimentos ginecológicos.

"Ele realizava cesáreas, cortava a barriga das mulheres e fazia diversos procedimentos. Como já diziam as pesquisadoras dos Estados Unidos, ele era um médico ou um sádico? Porque tudo o que ele fazia nesses corpos acontecia repetidamente e sem anestesia", resgata Emanuelle Góes, doutora em saúde pública pela UFBA.

Sims acreditava numa teoria racista de que pessoas negras sentiam menos dor e não hesitou em realizar 30 procedimentos cirúrgicos sem uso de anestesia em Anarcha.

Emanuelle aponta na pesquisa "A cor da dor: iniquidades raciais na atenção pré-natal e ao parto no Brasil" que essa percepção moldou o ensino da medicina e reflete até hoje nos atendimentos médicos.

O estudo mostra que as puérperas negras possuírem maior risco de terem um pré-natal inadequado, além de menos anestesia local quando a episiotomia (corte cirúrgico efetuado no períneo) foi realizada.

A gente não reconhece o racismo científico como uma prática que construiu a ciência da saúde. É reconhecer isso para mudar a condução do cuidado e da atenção às pessoas. Tudo está vinculado a essa ideia de humanidade hierarquizada"

Alternativas para melhorar a realização do exame

  • Ter um atendimento humanizado torna a consulta ainda melhor.
  • Existem diferentes tamanhos de espéculo, que podem ser facilmente comprados na internet ou em lojas especializadas.
  • Os instrumentos menores são indicados para pacientes que não se sentem confortáveis com penetração.
  • A paciente pode usar roupas leves e fáceis de tirar, como saias e vestidos.
  • É indicado que o exame não seja realizado durante a menstruação.
  • O exame pode ser feito a partir de um autoexame, no qual a própria paciente introduz o instrumento no corpo.

"A própria pessoa pode inserir o espéculo utilizando uma pequena quantidade de gel de ultrassom. Ainda é possível utilizar posições alternativas à ginecológica (com uso de perneira), com as pernas dobradas sobre a mesa ginecológica e os pés apoiados na maca", explica Carol Reis, 32 anos, ginecologista e obstetra.