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Após traumas, ela ensina mulheres a se defenderem na base da chave de braço

Jaqueline Almeida ajuda outras mulheres a se protegerem de violência por meio do jiu-jítsu - Arquivo pessoal
Jaqueline Almeida ajuda outras mulheres a se protegerem de violência por meio do jiu-jítsu Imagem: Arquivo pessoal

Roseane Santos

Colaboração para Universa

12/03/2023 04h00

A infância e a adolescência de Jaqueline Almeida, 32, foram marcadas por traumas. Ela é filha de um pai alcoólatra e teve um relacionamento difícil com o padrasto. Há 7 anos, Jaqueline deixou Mogi das Cruzes, na região metropolitana de São Paulo, rumo a Dublin, na Irlanda, onde se dedica ao jiu-jítsu.

No país, acompanhou de perto a repercussão de casos de feminicídio e, então, passou a ajudar outras mulheres a se protegerem de violência por meio de técnicas de defesa pessoal. A Universa, ela conta sua história.

"Tive um relacionamento desafiador com meu padrasto, que era controlador e me comparava com as filhas dele. Um dia, ele tentou me bater. Me emboscou no banheiro. Minha mãe interveio. A solução foi eu sair de casa aos 19 anos e, por muito tempo, rompi a relação com ele [eles se reconciliaram anos depois].

Sempre tive o sonho de falar inglês. Quando uma amiga voltou de um intercâmbio da Nova Zelândia e compartilhou tudo o que havia vivenciado, percebi que eu poderia desbravar um mundo novo. Anos depois, entrei em um relacionamento amoroso desgastante. Meu trabalho com tecnologia começou a me incomodar e pessoas me decepcionaram.

Estava em um momento muito ruim e entendi que havia chegado a hora de mudar. Segui meu coração e realizei meu sonho de falar inglês, conhecer outra cultura e morar em outro país [ela se mudou para a Irlanda].

Jaqueline - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Jaqueline, faixa marrom no jiu-jítsu, ganhou vários títulos
Imagem: Arquivo pessoal

Tinha pouco dinheiro e não sabia quando arrumaria emprego nem se conseguiria um. Consegui um trabalho aos fins de semana de ajudante de cozinha. Recebia menos do que o mínimo em salário. Mas nada que me desanimasse.

Até que, um dia, o dono do restaurante insistiu para me levar para casa. Mesmo eu não aceitando, ele me acompanhou o percurso todo, andando próximo a mim. No meio do caminho, ele me interceptou e me perguntou se eu fazia "trabalhos extras", afinal "eu era brasileira".

Naquele momento, sinceramente, quis desistir de tudo. Pensei em terminar o curso de inglês de seis meses e voltar para o Brasil

Jaqueline - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Jaqueline foi questionada se fazia 'trabalhos extras'
Imagem: Arquivo pessoal

Dias depois, fui convidada para ser voluntária em um projeto com idosos. Aquela ação me despertou a esperança de continuar.

Já amava o jiu-jítsu e, na Irlanda, comecei a treinar um ano depois que cheguei. Fiquei surpresa com o fato de não ter tantas mulheres treinando, como eu via no Brasil.

Eu e meu coach, John Kavanagh, chegamos a conversar sobre como poderíamos atrair o público feminino para o tatame. Coincidentemente, naquela mesma semana, ocorreram dois ataques horríveis em Dublin.

Uma moça, chamada Jastine, foi sequestrada e estrangulada, e uma menina de 14 anos foi brutalmente assassinada. Isso tudo em menos de sete dias. Foi então que eu e John decidimos ministrar aulas gratuitas de jiu-jítsu para mulheres.

'Percebi que era mais que jiu-jítsu'

Cada vez mais, atraímos o público feminino para os treinos. Um dia, uma aluna confidenciou que eu estava fazendo a diferença na vida dela, com uma reconexão com sua autoestima, após tantas dificuldades: abuso na infância, um câncer e uma tentativa de assassinado pelo próprio marido.

Aquilo mudou minha percepção. Cheguei à conclusão de que eu estava ensinando mais do que jiu-jítsu. Estava, de alguma forma, compartilhando técnicas que podiam salvar vidas

Sou faixa marrom de jiu-jítsu e, hoje em dia, ministro aulas gratuitas aos sábados pela manhã, na mesma academia onde treino.

Em parceria com a Secretaria de Esporte da Irlanda, tenho um programa de seis semanas em diferentes regiões. As mulheres conseguem frequentar as aulas pagando um valor simbólico e acessível para qualquer classe social.

Jaqueline - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Público inclui mulheres que já sofreram agressões e aquelas que querem prevenir
Imagem: Arquivo pessoal

Tenho dois públicos: mulheres que já sofreram agressão ou abuso; e mulheres que procuram as aulas por prevenção.

Enfatizo os pontos principais para que a pessoa que está sendo atacada possa contra-atacar [entre as estratégias, está ensinar a defesa com técnicas como a da chave de braço, em que se segura o punho do adversário entre as pernas].

Normalmente, quem procura o programa está em busca da técnica, mas, também, e muitas vezes inconscientemente, quer melhorar a autoconfiança, a autoestima e o autoconhecimento.

Ainda tenho planos para o futuro: fazer encontros virtuais para ajudar vítimas de violência e oferecer em comunidades treinos que possam ser replicados em casa pelo público feminino. Quero também criar uma rede de suporte online que alcance mulheres da Irlanda, do Brasil e de outros países.

Como denunciar violência

Ao presenciar um episódio de agressão contra mulheres, ligue para 180 e denuncie.

Casos de violência doméstica são, na maior parte das vezes, cometidos por parceiros ou ex-companheiros das mulheres, mas a Lei Maria da Penha também pode ser aplicada em agressões cometidas por familiares.

É possível realizar denúncias pelo número 180 — a Central de Atendimento à Mulher, que funciona em todo o país e no exterior, 24 horas por dia. A ligação é gratuita. O serviço recebe denúncias, dá orientação de especialistas e faz encaminhamento para serviços de proteção e auxílio psicológico. O contato também pode ser feito pelo WhatsApp no número (61) 99656-5008.

A denúncia também pode ser feita pelo Disque 100, que apura violações aos direitos humanos. Há ainda o aplicativo Direitos Humanos Brasil e a página da Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos (ONDH) do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania (MDHC). Vítimas de violência doméstica podem fazer a denúncia em até seis meses.

Caso esteja se sentindo em risco, a vítima pode solicitar uma medida protetiva de urgência.