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Viagem, filho e noivo: a rotina da viúva de Anderson, motorista de Marielle

Agatha Arnaus e Arthur, viúva e filho de Anderson Gomes, motorista de Marielle Franco - Zô Guimarães/UOL
Agatha Arnaus e Arthur, viúva e filho de Anderson Gomes, motorista de Marielle Franco
Imagem: Zô Guimarães/UOL

De Universa, do Rio de Janeiro

13/03/2023 04h00

O Flamengo jogava pela Copa Libertadores da América enquanto o motorista Anderson Gomes, 39, era aguardado em casa para assistir ao time do coração. Até ligou para a mulher avisando que logo chegaria. Mas a vitória de 2x0 sobre o Emelec, do Equador, nunca seria celebrada. Uma hora após o telefonema para a esposa, outra ligação entrou com a pior das notícias: ele havia sido executado ao lado da vereadora Marielle Franco (PSOL), dentro do carro que dirigia, no Centro do Rio de Janeiro.

Cinco anos após aquela trágica noite, a servidora pública Agatha Arnaus, 32, diz achar cada vez mais difícil chegar ao mandante do crime e descobrir sua motivação, mesmo com a irmã de Marielle, Anielle Franco, no posto de ministra da Igualdade Racial.

Desde 2019, o sargento reformado e expulso da Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro (PMERJ) Ronnie Lessa e o ex-policial militar Élcio Queiroz estão presos preventivamente e respondem por duplo homicídio triplamente qualificado (motivo torpe, emboscada e recurso que dificultou a defesa da vítima) e pela tentativa de homicídio contra uma assessora de Marielle, que também estava no carro e sobreviveu.

"Claro que cobrar a gente cobra, mas acho que algumas coisas não têm como voltar atrás. Não dá para fabricar provas", observa ela, enquanto brinca com Arthur, 6, seu único filho com Anderson.

Enquanto aguarda respostas, Agatha se reinventa e toca a vida. Formada em direito, cursou pós-graduação em direitos humanos durante a pandemia e passou no vestibular para educação especial. Também fez uma plástica, namorou por quatro anos, ficou noiva e não descarta outro filho. Conheceu lugares que não conseguiu visitar com Anderson e até se permitiu "noitadas".

"Até o ano passado eu era a mãe do Arthur e a viúva do motorista da Marielle. Agora quero ser a Agatha", diz a Universa. A seguir, alguns trechos da entrevista.

Um novo amor

Pouco tempo depois que o Anderson faleceu, uma amiga do trabalho me incentivou a baixar um aplicativo de relacionamento, mas desinstalei em seguida. Meses depois, reinstalei e uma pessoa falou comigo.

No primeiro encontro eu ainda usava a minha aliança e a do Anderson. Fora que tenho uma tatuagem no pé com o nome dele.

Também tive a sensação de que estava fazendo algo errado. Fiquei bem perdida.

Eu me preocupei com o que as pessoas falariam por estar com outro homem e ainda postar coisas do Anderson na rede social

Mas, depois de um tempo, consegui botar cada coisa no seu lugar. O Anderson não vai sumir da minha vida porque conheci outra pessoa. Não troquei de marido nem mudei de namorado. Ele é o pai do meu filho e estou brigando para que a gente tenha uma resposta para o crime. Mesmo assim, um dos motivos para ter terminado o relacionamento foi o fato de ainda carregar esse título de viúva que me foi imposto.

Os cuidados com o filho

Agatha e Arthur - Zô Guimarães/UOL - Zô Guimarães/UOL
Agatha Arnaus e Arthur, seu filho com Anderson Gomes
Imagem: Zô Guimarães/UOL

O Arthur nasceu com onfalocele. O intestino e o fígado dele se desenvolveram dentro do cordão umbilical e ele tem cinco alterações genéticas. Cheguei a ouvir sugestões para interromper a gravidez caso meu filho tivesse síndrome de Down, mas o Arthur me mudou muito, e para melhor.

O Anderson nem soube dessa situação porque ainda estávamos fazendo exames para fechar o diagnóstico quando tudo aconteceu. Seis meses após a morte dele, o Arthur fez uma cirurgia delicada, pois estava com obstrução intestinal, e foi a primeira vez em que achei que ele não fosse aguentar. O Arthur é a última coisa que sobrou do Anderson. Tinha minha família do meu lado, mas fui lidando com o medo de ficar sozinha no mundo.

Foram 18 dias no hospital em que me pegava pensando com quem tomaria decisões sobre a vida do meu filho que não fosse o pai dele. Foi uma carga pesada e não queria dividir com a família, porque entendia que ela estava lá para me segurar emocionalmente, não para decidir o destino dele.

Meu ex-noivo acabou nesse lugar de pai em exercício do Arthur em muitos momentos

Ali entendi que alguém poderia ter esse espaço. Não sei se é egoísmo da minha parte querer segurar tudo sozinha e privar o Arthur de algumas coisas. O Anderson é o pai dele, mas experimentei esse lado de ter alguém com quem pudesse dividir as coisas.

Sem auxílio

O Arthur não tem muita noção do que aconteceu. É difícil também saber o que ele está sentindo. Como ele não fala, interpreto algumas situações.

Já houve momentos de ele olhar pro céu e falar "papai, papai". No último Natal ele fez isso. Já aconteceu também de começar a rir na cama e rolar sozinho como se alguém estivesse fazendo cócegas nele, e o Anderson brincava com ele assim.

Nunca recebi auxílio do Estado. Tenho pensão do INSS porque o Anderson trabalhava. E no começo tive ajuda do PSOL. Necessidade a gente nunca passou.

O nome do "motorista"

Em alguns momentos, senti um apagamento do Anderson. Uma vez, um repórter me ligou perguntando o que eu achava da federalização do caso da vereadora Marielle e do motorista. Fiquei um pouco irritada e perguntei se ele sabia ao menos o nome do motorista.

Houve uma reunião na polícia em que uma pessoa se referiu a toda família da Marielle pelo nome e a mim e ao meu cunhado como "vocês outros".

Até a Mônica [Benício, viúva de Marielle] viu que eu estava incomodada e reclamou.

Viagens, plástica, noitadas

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Agatha: viagens, estudo e cirurgia plástica
Imagem: Zô Guimarães/UOL

Quando voltei a namorar, no fim de 2018, comecei a me arrumar um pouco mais, e meu ex me incentivava a olhar mais para mim, e também a voltar a estudar.

Em 2019, viajei pela primeira vez sozinha, para Minas Gerais. Bateu um sentimento de que não tinha aproveitado a vida, nem feito o que queria. O Anderson já tinha reclamado de eu estar muito focada no Arthur e de não ter tempo para a gente e fiquei com isso na cabeça.

Fui a lugares que não conhecia, como São Paulo, tive umas noitadas. Fiz uma plástica, de redução dos seios.

Pouco contato com família de Anderson

O Anderson já não tinha pai vivo e mantenho pouquíssimo contato com o irmão e a mãe dele, que moram aqui ao lado. No primeiro ano, a mãe dele chegou a me falar que não conseguiria ir na casa onde morávamos porque nosso apartamento tinha a personalidade do Anderson. Eu então levava o Arthur na casa dela, mas aí veio a pandemia e não saímos de casa.

Não sei se dói nela ter esse contato. Já houve vezes de ela afirmar que sempre imaginava o Anderson chegando quando conversávamos e isso a deixava ferida.

Acho que entendo. O Anderson queria conhecer Bonito (MS), mas não conseguimos viajar para lá, e pensei em soltar as cinzas dele em meio à natureza. Como ele foi criado no catolicismo, a mãe não gostou da ideia. Respeitei, porque se fosse com o Arthur também poderia querer o meu filho perto.

Pós-graduação e concurso

Uma vez, minha madrasta me falou que eu tinha que ser muito feliz porque vivi um amor de verdade. Era verdade. Eu tinha um amigo e sinto muito orgulho do marido que tive.

Tenho saudades dele, da vida que a gente tinha.

Hoje, por outros motivos, gosto mais da mulher que sou, menos acomodada

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Agatha brinca com o filho: "Não quero ser mártir"
Imagem: Zô Guimarães/UOL

Mas se pudesse dar uma parte do meu corpo para que ele estivesse aqui, daria. Até mesmo trocaria de lugar para ele ficar com o Arthur.

Eu podia ficar chorando e criar uma postura de coitadinha, porque em alguns momentos isso é cômodo. Também não quero ser um mártir. Já me permiti desabar como já tive uma fase de querer ser uma casca de tão forte. Mas decidi correr atrás do que tinha vontade.

Fiz pós-graduação em direitos humanos no meio da pandemia e agora quero estudar para prestar concurso. Fiz Enem (Exame Nacional do Ensino Médio) e passei para educação especial, mas decidi não fazer porque tenho a sensação de que ainda não encontrei o que eu queria.

Até o ano passado eu era a mãe do Arthur e a viúva do motorista da Marielle. Agora quero ser a Agatha.