'Tomaram meu filho de mim e, 30 anos depois, descobri que ele me procurava'
A cozinheira Jussara Maria da Silva, 48, conta que ficou grávida aos 12 e foi obrigada pela patroa a entregar a criança à adoção. Ela passou mais de 30 anos tentando encontrar o filho. Certo dia, foi surpreendida com a notícia de que ele estava vivo, morava na Europa, e também procurava por ela.
A Universa, Jussara conta sua história.
"Nasci em uma aldeia indígena em Pernambuco. Minha mãe conheceu meu pai em um presídio quando ela visitava meu avô, que estava lá porque se envolveu em uma briga. Já meu pai cumpria pena por homicídio.
Ela já tinha uma criança do primeiro relacionamento e depois, quando ele iniciou o regime semiaberto, teve mais três filhos com ele. Sou a caçula. Mas ele era muito violento: espancava minha mãe e batia na gente.
Ele abusava sexualmente de mim. Um dia minha mãe fugiu de casa, levando só a filha do primeiro casamento. Ficamos à mercê do meu pai
Os abusos não paravam. Não me lembro direito como acontecia, só que era abusada pelos meus tios, pelos homens nas casas onde ficava.
Quando tinha 11 anos, comecei a sonhar em casar, constituir família, ter um lar. Queria sair de perto do meu pai. Chorava muito, sentia falta da minha mãe e não entendia por que ela tinha nos deixado.
Um dia uma amiga me apresentou um rapaz de 20 anos. Me apaixonei e fui morar com ele e a mãe. Eu tinha 12. Não sabia ler nem escrever porque meu pai nunca me colocou na escola.
Acabei engravidando do meu namorado e ele começou a me rejeitar. Quando ele apareceu com uma namorada da idade dele, foi um susto, não sabia como reagir ou o que fazer
Aprendi a contar o tempo enquanto estava grávida, nem sabia calcular a passagem das semanas ou dos meses. Uma mulher que morava nos fundos da casa do meu namorado me aconselhou a trabalhar para me sustentar. Foi quando conheci minha patroa, uma médica que se mudaria para São Paulo para fazer doutorado.
Ela descobriu que eu estava grávida e me convidou a me mudar com ela e eu fui. Isso foi em janeiro de 1987. Peguei uma sacola, coloquei três vestidinhos e embarquei com ela e os filhos com destino a São Paulo. Eu não sabia o que me esperava
Dormindo embaixo da mesa
Fomos morar em um apartamento pequeno na Vila Mariana [zona sul de São Paulo]. Ela me colocava para dormir embaixo da mesa da cozinha. Eu limpava e arrumava a casa.
Quando minha barriga começou a crescer, ela me disse que eu tinha de entregar meu bebê à adoção, que não tinha condições de criar. Chorei muito, disse que não queria, que não ia fazer aquilo
Mas ela disse: 'Você não tem família, não tem dinheiro, não tem casa. Você não tem querer'.
Com 13 anos, fui ao hospital dar à luz. O parto foi muito difícil: eu não tinha corpo de mulher, então o bebê, um menino, teve de ser puxado com fórceps.
Minha patroa atendia nesse hospital e ajudou a fazer o parto. Quando a enfermeira perguntou qual nome eu daria, ela rapidamente disse que não importava, porque eu não ficaria com meu filho.
Eu fiquei chocada, porque ainda tinha esperança de que ela me deixaria ficar com ele.
Mesmo assim o registrei com o nome de Bruno. Ela só me deixou fazer porque o registro era um documento obrigatório para a adoção.
No dia em que saí do hospital com o Bruno nos braços, uma amiga da minha patroa se aproximou do carro, pegou meu filho e foi embora. Eu gritava, chorava. Era como se o chão se abrisse e me engolisse.
Um mês depois ela deixou que eu conhecesse o casal que estava adotando meu filho. Era um casal de franceses. Eu queria explicar que eu estava fazendo aquilo obrigada, que não o estava abandonando, mas eles não entendiam nada do que eu dizia.
Dias depois, uma vizinha da minha patroa me disse que ela tinha vendido meu filho para esse casal [a venda nunca foi comprovada, mas essa fala abalou Jussara]. Foi quando tentei me matar. Minha patroa me encontrou desacordada e conseguiu me levar a tempo para um hospital. Sobrevivi, mas fugi da casa dela.
Trabalhando como doméstica, fui encontrando lugar para morar nas casas das famílias. Algo me dizia que eu tinha de sobreviver, que tinha que continuar lutando
'Vazio da adolescência não passava'
Quando fiz 19 anos, conheci um rapaz, fui morar com ele e engravidei do meu segundo filho. Eu achava que uma criança poderia preencher o vazio que eu sentia, mas estava enganada. A relação durou 6 anos e me separei.
Depois conheci outro rapaz. Com ele tive meu terceiro filho, mas a relação também não durou. E, apesar de amar muito meus filhos, aquele vazio do que tinha acontecido na minha adolescência não passava.
Aos 30 anos, resolvi voltar a estudar. Aprendi a ler e escrever direito. Minha dicção melhorou, me sentia mais segura. Estudar me trouxe autonomia. Eu trabalhava como recepcionista e conseguia pagar o aluguel de uma casinha de três cômodos onde eu morava com meus filhos. A vida foi melhorando
Em todos esses anos eu não tirava o Bruno da cabeça. Meus filhos me apoiavam e também me ajudavam a procurá-lo na internet. Mas eu não sabia o nome que a família tinha dado a ele. Só que eram franceses e moravam em Paris. Nunca consegui uma pista e chorava quando pensava que talvez ele pudesse ter morrido.
'Ele está te procurando'
Quando estava prestes a comemorar 42 anos, tive uma visão com ele, enquanto olhava para o céu à noite. Vi um rapaz, muito bonito e parecido comigo, usando terno e gravata.
No dia seguinte, viajei com amigas para um sítio, para comemorar o meu aniversário, quando meu telefone tocou. Uma moça, chamada Ana, dizia ser do Ministério Público de Brasília. Eu gelei. Por que o MP estaria me procurando?
Ela me disse: 'Você não é a Jussara, mãe do Bruno, que foi adotado há 30 anos? Estou te ligando para dizer que ele está te procurando'
Meu coração disparou, minha boca ficou seca, meu corpo todo tremia. Ela disse que ele vinha me procurando desde que completou 18 anos. Que esteve duas vezes no Brasil para me encontrar, trazendo a certidão de nascimento que os pais adotivos entregaram a ele. Ele foi registrado com o nome de Basile [o nome foi trocado na França], mas era o meu Bruno.
Em abril de 2016, fizemos a primeira chamada de vídeo. A gente mal se entendia. Mas eu podia ver que ele era a minha cara. Estávamos muito emocionados.
Ele fala seis línguas, menos o português. Conversamos um pouco, por sinais, usando algumas palavras e ele me prometeu que aprenderia a falar português e viria me ver em junho daquele ano. O encontro foi em um hotel de São Paulo, onde ele estava hospedado.
Quando o vi, meu coração parecia que ia saltar do peito, sair pela boca. A gente se abraçou com força e ficamos um tempo ali, agarrados. Eu pedia perdão, chorava, dizia o quanto eu o amava
Ele conseguiu me acalmar e disse que não sentia raiva, que ele entendia tudo o que tinha acontecido e que eu tinha feito o que era o melhor para ele na época.
Em 2017, fui visitá-lo na Suíça, onde ele mora. Ele queria que eu passasse meu aniversário. Foram momentos maravilhosos, ele já sabia falar o básico do português e me levou para conhecer a Itália, Mônaco, a França.
Me encontrei com os pais adotivos dele, nos abraçamos, foi muita emoção. Nem comentamos sobre o que aconteceu [Jussara também chegou a procurar a antiga patroa, mas depois resolveu deixar esse assunto no passado]. A alegria de estar com meu filho era mais forte do que qualquer ressentimento ou mágoa.
Hoje ele está casado com uma russa, uma mulher linda, e teve dois filhos, meus netinhos Gabriel e Theodore. A gente se fala o tempo todo pelo celular. Encontrar meu filho foi algo que mudou a minha vida para sempre. Me tornei mais forte, ganhei um ânimo que já nem sabia que existia
Hoje posso curtir sem sentir remorso ou culpa meus filhos, Diogo e Jordan, e minha netinha Lívia, filha do meu caçula. Vivemos juntos, ganho meu dinheiro cozinhando, fazendo bolos, encomendas para festas.
E agora estou começando a rascunhar a história da minha vida, com todos os detalhes, quem sabe para deixar registrado tudo o que aconteceu em um livro. Sou a prova de que o amor é a força mais poderosa do Universo. É ele quem alimenta a esperança de dias melhores."
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