Hollywood de Deus: mulher deve fazer faxina, limpar Instagram e não flertar
No final da tarde do último sábado de março, a avenida Celso Garcia, no Brás, em São Paulo, estava tão movimentada como em um dia de semana, com o eco dos sons de buzinas do trânsito que se formava em frente ao Templo de Salomão. Dezenas de filas eram organizadas para a revista de quem entrava na sede da Iurd (Igreja Universal do Reino de Deus): nelas, só havia mulheres. Elas estavam ali para participar de uma sessão de Godllywood — ou Hollywood de Deus —, movimento criado em 2009 pela escritora e apresentadora Cristiane Cardoso, filha do fundador da Iurd, o bispo e empresário Edir Macedo.
No subsolo do suntuoso templo, onde fica o estacionamento, também há filas para entregar celulares - a entrada com eletrônicos é proibida no local. Ágeis, funcionários da igreja orientam as mulheres, que sobem as escadas apressadas para conseguir os últimos lugares para a sessão de autoajuda conduzida por Cristiane Cardoso. O culto, naquele dia, tinha formato de palestra. Os homens não estavam autorizados a entrar — alguns esperavam suas companheiras na calçada.
Por meio de ensinamentos e desafios, Godllywood pretende resgatar a "essência feminina". No Instagram, há uma página dedicada para as 81 lições que as seguidoras devem cumprir para se tornarem mulheres virtuosas. Os desafios variam: propostas de meditação e reflexões, como escrever o que se vê ao se olhar no espelho; leitura de trechos específicos da Bíblia; faxina em todos os cômodos da casa; e até parar de seguir, nas redes sociais, quem não é da mesma fé e escrever quem foi removido em um caderno.
Na internet, é possível comprar camisetas do movimento por R$ 69,90. Mas, para adquirir o item, é necessário preencher um formulário. "Se você quer usar a camiseta Godllywood, precisa entender o que ela representa e avaliar se está pronta para viver esse movimento", diz o site. Entre os requisitos, assistir às lives do movimento e só vestir aquilo que convém para honra e glória do Senhor. "Eu não falo palavrão, não minto, não me meto em fofocas, não sou mesquinha, não me rebelo, não desrespeito os meus pais, não flerto, não sou preguiçosa e não assisto nem ouço o que não presta", é outro item que é preciso assinalar para vestir a camisa de Godllywood.
Encontros presenciais têm aconselhamento e clima de sessão de coach
Além dos desafios online, os encontros presenciais de mulheres no Templo de Salomão, transmitidos para todas as cidades onde a igreja tem unidades no país, ocorrem mensalmente, no último sábado do mês. Naquele dia, Cristiane discorreu sobre a carência e como o sentimento de solidão pode levar mulheres a situações de perigo, como entrar em um relacionamento abusivo. Segundo ela, tem quem chegue "ao cúmulo de ficar doente para conseguir carinho", já que "a vontade de ter atenção é maior do que a vontade de buscar o Espírito Santo".
"A pessoa carente se entrega para qualquer coisa. Isso tem feito muito mal às mulheres e chega a atrair abusos, uma vez que a pessoa com más intenções vê a outra precisando de muito carinho e pode se aproveitar dessa fraqueza", diz ao microfone.
A apresentadora também relaciona vídeos que adolescentes publicam no TikTok à carência. "A menina não tem o carinho de uma mãe, sente um vazio e se expõe na internet com danças sensuais. Então, atrai homens que só querem saber do seu corpo", afirma.
A conversão à religião é tida como a solução para estes e outros sofrimentos das mulheres, continua Cristiane. "Quando se supre a carência pelo Espírito Santo, a pessoa pode não ser casada, não ter tido a presença dos pais nem ser muito bonita, mas vai ter paz. Não vai haver essa fome nem vai ficar se desvalorizando."
Sem formação em psicologia, Cristiane diz que é muito procurada por mulheres para aconselhamento. "Mas, quando identifico carência, eu corto, porque não quero ninguém dependente de mim", diz ela, que orienta a fiel a "falar com o Espírito Santo".
'Me batizei no ano que conheci o movimento Godllywood'
No Rio de Janeiro, a estudante de pedagogia Edilene Protasio, 27, assiste à transmissão através de um telão suspenso em um dos templos da Universal de Botafogo, zona sul do Rio de Janeiro. Por falhas técnicas, a imagem some em alguns momentos. Ainda assim, as fiéis se aglomeram no templo, mesmo tendo a opção de acompanhar a transmissão pela internet.
A estudante frequenta as reuniões de Godllywood desde 2011 e diz que até hoje aprende lições novas. Neste encontro, por exemplo, afirma que a pregação abriu os olhos dela para a ansiedade de uma de suas quatro filhas. "O pai a abandonou. Acho que essas aflições podem vir da carência, da falta de um pai", avalia.
Paulista de Osasco, ela é mãe solo de quatro meninas, com idades entre 6 e 10 anos. Sofreu abuso quando adolescente, teve uma irmã assassinada e foi expulsa de casa pelos pais, que são alcoólatras. Sobreviveu próximo à Cracolândia e afirma ter superado as dificuldades graças à igreja.
"Frequentava a igreja desde pequena, com uma amiga. Me batizei no ano em que conheci o movimento Godllywood e em seguida comecei a fazer as tarefas. São elas que me ajudam a superar os traumas de infância e a maternidade solo", diz.
"Para mim, era uma terapia, porque não são somente tarefas religiosas como ler a Bíblia. Há também orientações sobre como manter o guarda-roupa organizado e doar o que não se usa mais. Isso me ajudou até nas crises de ansiedade", afirma.
Edilene diz que um dos desafios que mais gostou de realizar foi limpar as redes sociais. "Aprendi que não adianta ter 500 pessoas e só falar com 10. E a passar o final de semana sem televisão e celular, para dar atenção às minhas filhas. Tem tarefa que repito até achar que deu resultado." Ela conta que adapta algumas tarefas da igreja para as filhas. "Percebo que hoje os jovens estão muito ansiosos e perdidos e precisam de orientação."
Movimento surge com ascensão de debates feministas
Godllywood foi criado nos Estados Unidos, em Houston, onde Cristiane Cardoso morava em 2009. Na época, ela afirmou ter percebido uma demanda de adolescentes por uma formação de assuntos sobre mulheres, como gravidez precoce, para que elas se tornassem "melhores para Deus".
No início, o grupo se chamava "sisterhood" -- em referência às fraternidades comuns nas universidades americanas. Era estruturado em grupos pequenos, em que meninas cumpriam as tarefas designadas.
Elas eram acompanhadas pelas "big sisters", mulheres mais experientes e ligadas à igreja. Ao final do cumprimento das tarefas, poderiam ser consideradas mulheres virtuosas.
O movimento começou nas capitais brasileiras em 2010, já com o novo nome. A pesquisadora Monise Martinez, doutoranda em Estudos Feministas e especialista em estudos de gênero e sociologia da religião, finaliza uma tese na Universidade de Coimbra, que será defendida em breve, sobre o grupo de mulheres liderados por Cristiane Cardoso.
"Este nome vem como uma proposta de misturar as palavras Hollywood e Deus. Cristiane queria contrariar os valores disseminados por Hollywood, que ela diz serem negativos. Assim, cria Godllywood, para transmitir esses valores de acordo com o que é considerada uma feminilidade desejável", explica.
De um pequeno grupo de formação, diz a pesquisadora, Godllywood se transformou em um movimento — e hoje é um ecossistema com uma estratégia de comunicação com mulheres como público-alvo. "Muitas mulheres começaram a publicar os desafios que cumpriam no Facebook e isso ganhou uma proporção maior dentro da Universal, o que tornou o programa maior, em 2016, e com uma nova modalidade completamente online que se chama Godllywood Autoajuda", explica.
"Em 2019, decidiu-se caracterizar Godllywood como um movimento, com a ideia de alcançar mulheres que estejam interessadas e compactuem com os valores do grupo, mas não precisam ser da Universal. Ou seja, você pode aderir ao movimento, com foco nas suas práticas individuais."
A pesquisadora diz não ser apenas uma coincidência a emergência do movimento no início da década de 2010, quando a discussão sobre feminismos também ganhou força no debate público no Brasil. "Godlywood aborda temas do feminismo. Por exemplo, a pressão das mídias sobre os corpos das mulheres, a jornada dupla ou tripla de trabalho e a violência doméstica. Isso ocorre junto com a ascensão dos feminismos e, também, da disseminação dos movimentos que são chamados antifeministas e anti-LGBTQIA+, com discussões, por exemplo, sobre 'ideologia de gênero' no Plano Nacional de Educação", diz.
"As líderes do movimento não são declaradamente antifeministas. Ou seja, não existe uma declaração explícita o tempo inteiro. Mas, nessa linguagem do aconselhamento e nessa construção, os movimentos feministas são apontados como a causa do problema. São descritos como movimentos excludentes e até mesmo anticristo", conclui Monise Martinez.
A importância das mulheres
Ao final da palestra no Templo de Salomão, Cristiane Cardoso sai de cena. Sobe ao púlpito seu marido, o bispo Renato Cardoso, com quem a apresentadora já escreveu livros, como "Namoro Blindado". Em seu discurso, ele continua a falar para o público-alvo de Godllywood, as mulheres. Cita uma passagem da Bíblia para explicar que as mulheres também foram essenciais para sustentar a obra de Jesus Cristo.
"O livro sagrado mostra como as mulheres foram importantes. Quando Jesus e seus discípulos estavam viajando, pregando a palavra de Deus, quem os sustentava e os alimentava eram elas", descreve o bispo. Então chega a hora da oferta, que pode ser entregue em envelopes ou por meio de máquinas de cartão de crédito. Também se aceita pix. "Vocês, mulheres, também podem sustentar a igreja."
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