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'O TikTok mudou nosso jeito de dançar', diz coreógrafa de Gaby Amarantos

De Universa, do UOL

02/05/2023 04h00

Durante o isolamento social na pandemia, a coreógrafa Darlita Albino, 30, se irritava com frequência ao ouvir a expressão "dancinha do TikTok". "Naquele momento, estava tudo aflorado em mim e me doía escutar a palavra no diminutivo. É difícil para quem trabalha com isso. A dança já é pouco valorizada no Brasil", conta.

Darlita trabalha como bailarina do rapper Djonga e coreógrafa da cantora Gaby Amarantos. Passado o isolamento, ela se livrou da irritação — sente-se em paz com a expressão quando vê as sobrinhas se divertindo ao criar vídeos para a plataforma. Ainda assim, ela se preocupa com a falta de reconhecimento e apropriação do trabalho de criadores negros na rede social.

"Há muitas danças afro nestes movimentos e as pessoas não fazem ideia que estão dançando", diz. "Os créditos dos challenges [como se chamam os desafios de dança no TikTok] não vão para os criadores da coreografia, principalmente quando a pessoa é preta."

A coreógrafa — que começou na dança aos 11, frequentando oficinas na zona leste de São Paulo — afirma que o TikTok mudou nosso jeito de dançar. "Fazemos exatamente o movimento que a música manda. Se a música diz 'você', você aponta; se diz 'não', você faz um X com a mão. Isso acaba padronizando os movimentos", avalia.

Darlita passou o Dia da Dança, comemorado em 29 de abril, na competição Red Bull Dance Your Style, conhecida como a Copa do Mundo das danças. Ela foi a campeã da etapa nacional no ano passado e representou o país na etapa global, na África do Sul.

UNIVERSA: Como você começou na dança?
Darlita Albino:
A influência é da minha família. Minha mãe dançava comigo na barriga, com quase nove meses de gravidez. Todas as expressões artísticas pretas estavam presentes em casa -- samba rock, samba e lagartixa, uma dança conhecida em São Paulo.

Iniciei as aulas de dança aos 11, em projetos públicos em Itaquera, bairro da zona leste de São Paulo. Frequentei uma casa de cultura chamada Alfredo Volpi. Comecei as aulas por causa da separação dos meus pais. Minha mãe pensou que seria uma forma para eu expressar os sentimentos.

Tive como professor uma pessoa extremamente importante na cultura hip-hop, o Nelson Triunfo, que chamo de Nelsão. Ele me mostrou que a dança era maior do que a sala de aula. Conheci competições de dança, rodas, festas, batalhas, o grafite, toda a cena hip-hop.

Quando a dança virou sua profissão?
Comecei a acompanhar o Nelsão e, quando eu tinha 13 anos, ele me convidou para me apresentar -- e pagou cachê. Fiquei assustada porque não passava na minha cabeça trabalhar com isso.

Minha mãe me acompanhava nos eventos e me incentivou a investir na profissionalização. Assim, entendi que poderia trabalhar com dança.

Como começou a coreografar para artistas?
Foi orgânico. Eu estava nos lugares certos e as coisas foram acontecendo. No início, não tinha pretensão de ser coreógrafa. Mas comecei a receber convites, porque era uma figura presente na cena da dança e em eventos como a São Paulo Fashion Week.

E também porque fazia aulas. Meus professores coreografavam artistas e me indicavam para trabalhos. Quando o convite aparecia, eu aceitava.

Você dança com Djonga e Gaby Amarantos, que são artistas bem diferentes. Como é transitar por esses estilos?
Me formei em dança contemporânea. Por mais que hoje eu seja conhecida por estilos específicos de danças urbanas, abri a mente para o que viesse, mesmo não tendo domínio da técnica.

O início do trabalho com a Gaby Amarantos foi desafiador. Quando dançamos com o artista, precisamos entender a personalidade dele, o que funciona no palco e o que quer transmitir no show. Então transformamos isso tudo em movimento. Senti dificuldade porque a música da Gaby Amarantos não era o tipo que eu consumia, na época. Mas comecei a estudar, entender que existem várias vertentes diferentes: o tecnobrega, o brega funk, o tecnomelody. Busquei danças e estilos que conversassem com esses ritmos.

Como se cria uma coreografia?
Posso criar uma coreografia para uma publicidade ou para um show. Não existe fórmula exata porque são ambientes diferentes. Precisamos entender o ambiente e o que pode funcionar. Às vezes, uma coreografia de show precisa ser de um jeito; mas, para o vídeo, é de outro, porque pensamos no ângulo da câmera, no que pode valorizar a cena.

Mas elas têm a música em comum. Ao criar uma coreografia, preciso primeiro entender o que a música diz, fazer a minha interpretação e produzir movimentos.

Com o TikTok, vivemos uma explosão de vídeos de danças e coreografias. Como esse movimento mudou nossa forma de dançar?
Quando se tenta facilitar algo para a maioria ter acesso, há o ponto positivo e o negativo. No caso do TikTok, existe uma padronização de movimentos que é considerada um estilo de dança. Não é e jamais será.

Esse estilo padronizado é o que chamo de "lyrical". Fazemos exatamente o movimento que a música determina. Se a música diz "você", você aponta; se diz "não", você faz um X com a mão. Isso cria um padrão. As pessoas acham que, toda vez que ouvir a palavra "você", vou apontar.

Sinto que essa padronização também afeta a indústria da música. Vejo artistas criando músicas para a plataforma. Hoje, escuto uma música e falo: "Essa foi criada para o TikTok".

Claro que sempre existiram coreografias fáceis para todo mundo acompanhar, como aquela d'As Meninas [banda do hit "Xibom Bombom", de 1999]. Mas é perigoso divulgar dancinhas do TikTok como se fossem um estilo de dança especial. Ali, inclusive, tem muitas danças afro e as pessoas não fazem ideia que as estão dançando.

Existe um apagamento do trabalho de coreógrafos negros no TikTok?
Os créditos dos challenges não vão para os criadores da coreografia, principalmente quando é uma pessoa preta. Nos Estados Unidos, houve uma ação de dançarinos contra isso. Coreógrafos pretos pararam de produzir conteúdos na plataforma devido a isso.

Um exemplo recente aqui no Brasil é "Lovezinho". Todo mundo conhece a música, mas nem todo mundo sabe que quem criou o challenge foi um homem preto. Quem está em todos os programas de TV? Não é um homem preto. E não é um dançarino, é um influencer. Isso desvaloriza nosso trabalho.

Como dançarinos profissionais podem se beneficiar destas plataformas?
Existem dançarinos profissionais que produzem conteúdos a partir de suas próprias coreografias, sem descaracterizá-las. Tem quem ensine sobre a história da dança, do hip-hop. Assim, os usuários da plataforma poderão entender que existem formas de se movimentar -- e esses movimentos têm uma história e uma origem que não é o TikTok.

Qual a importância dos espaços de competição para a divulgação da dança?
Sempre estive em competições. A primeira foi em 2010. Além de dar visibilidade ao trabalho, a competição é estudo. Quando você compete, lida com estratégia, emoção, razão e preparo físico. É um momento de investigação.

Darlita Albino no Red Bull Dance Your Style no Rio de Janeiro - Marcelo Maragni / Red Bull Content Pool - Marcelo Maragni / Red Bull Content Pool
Darlita Albino no Red Bull Dance Your Style no Rio de Janeiro
Imagem: Marcelo Maragni / Red Bull Content Pool

Como é o fomento público para a dança?
A maioria dos dançarinos vem de espaços públicos. Não tenho como dizer que não acredito nesse tipo de incentivo.

Falta um olhar, no Brasil, para a dança como profissão. Há espaços públicos em São Paulo que, ano após ano, correm o risco de serem fechados. Já trabalhei em um lugar que arriscava encerrar as atividades, mesmo com muitos alunos.

Podemos trabalhar dando aulas, coreografando pessoas, dirigindo movimentos de publicidade. Existem várias áreas na dança. Mas o Brasil ainda não enxerga a dança como trabalho.