'Patroa me mandava ir à Paulista bater panela', diz deputada e ex-doméstica
Vinte anos atrás, quando se mudou para São Paulo, Ediane Maria imaginava que conseguiria terminar os estudos e ser professora. Mas não foi o que aconteceu. "O que me esperava, na verdade, era um quarto de empregada", diz.
No último dia 15 de março, Ediane Maria também lidou com algo que não estava em seus planos ao deixar Floresta, no sertão de Pernambuco, onde nasceu há 39 anos. Eleita pelo PSOL com mais de 150 mil votos em 2022, tomou posse como deputada estadual na Alesp (Assembleia Legislativa de São Paulo). É a primeira trabalhadora doméstica a ocupar o cargo no estado — e uma das 25 mulheres entre 94 deputados.
Ediane Maria concilia o trabalho parlamentar com a coordenação do MTST (Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto) — ela integra o grupo desde 2017.
Em 27 de abril, data que marca o Dia da Empregada Doméstica, lançou a Frente Parlamentar pela Valorização do Trabalho Doméstico e de Cuidado. O objetivo é evitar que trabalhadoras domésticas passem por situações como a que enfrentou no passado. Em 2003, os patrões viajaram e deixaram Ediane trancada em casa, por dois dias. Esqueceram que ela estava lá. "A impressão é que viramos parte da mobília", diz.
Em entrevista a Universa, Ediane Maria contou essa e outras histórias.
Como a senhora caracterizaria o trabalho doméstico no Brasil?
Como um resquício da escravidão. Ainda hoje, mulheres são resgatadas em situação de trabalho análogo à escravidão; trabalham, mas não têm direito a um salário-mínimo. Também tem muitas que moram em casas de família.
Já estive nessa situação. Sei como é acordar às 6h e cumprir uma carga horária gigantesca, até às 22h. Você não paga aluguel, água, luz, então tem que ficar disponível, à mercê dos patrões.
Há algum episódio, sobre esse período, que tenha marcado a senhora?
Também fui vítima da escravidão moderna. Em 2003, meus patrões saíram para passear, não me avisaram e me deixaram dois dias esquecida até que bombeiros me resgatassem.
A impressão é que viramos parte da mobília. E tentamos nos enquadrar nisso, precisamos agradar. Qualquer trabalhadora doméstica está sempre sorrindo, é receptiva.
A PEC das Domésticas completou 10 anos. Como a lei mudou a vida da senhora?
Quando a Dilma Rousseff sancionou este projeto, quem trabalhava três vezes por semana passou a ter direito ao registro em carteira. Muitos patrões dispensaram a empregada de um dia de trabalho para não precisar registrá-la. Outros achavam absurdo ter que pagar a previdência.
Na última casa em que fui doméstica, já trabalhava havia 10 anos sem registro. Trabalhava segunda, quarta e sexta; então, tive que ser registrada.
Antes, se o feriado caísse na segunda, eu tinha que escolher se trabalharia na terça ou na quinta, para compensar. Com a PEC das Domésticas, pude falar que não ia na terça ou na quinta; e que eu teria, sim, um feriado. Vimos que não tínhamos só deveres, mas também direitos.
A senhora sofreu retaliações por apoiar a PEC das Domésticas?
Por mais que eu fosse vista como "da família" e minha patroa me adorasse, quando vieram os direitos, houve retaliação. Ela chegou a me pedir para ir à avenida Paulista bater panela [pelo impeachment da então presidente Dilma Rousseff]. Eu nunca havia ido à Paulista em um final de semana passear com meus filhos.
Também comecei a estudar nessa época, pelo Pronatec [Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e Emprego, criado pelo governo federal em 2011]. Senti um incômodo dos patrões quando comecei a ganhar consciência e querer lutar por melhores condições de vida.
Como esses incômodos se manifestaram?
Por exemplo: precisei assinar um documento que dizia que se eu sofresse um acidente fora dos meus dias e horário de trabalho — segunda, quarta e sexta —, eu não teria assistência.
Um dia, o feriado caiu exatamente no dia que eu trabalhava e a patroa perguntou: "Tem como você vir terça ou quinta?". Respondi: "Lembra aquele documento que assinei? Se eu sofrer um acidente, não é meu dia de trabalho; então, não venho".
Como começou a se interessar pela política?
Sempre questionei a dinâmica da cidade. Quem é do Norte ou Nordeste -- ou de cidade pequena -- pertence a um espaço. Você é alguém, tem uma identidade. Ao chegar a São Paulo, eu não pertencia a um espaço, era empregada de alguém. Isso sempre me incomodou.
O lugar que tive para morar e criar meus filhos era emprestado: o fundo da casa da minha ex-sogra. Quando entrei na luta por moradia, ainda não tinha essa consciência política. Mas achava um absurdo não conseguir ter uma casa, por mais que eu trabalhasse. Entrei no MTST na ocupação Povo Sem Medo, em São Bernardo do Campo — a maior ocupação da América Latina — porque queria uma casa para meus filhos, não só um teto.
A senhora sentiu tratamento diferente dos patrões depois que começou a participar de movimentos sociais?
Quando entrei no movimento, fiquei empolgada, falava no trabalho sobre isso. Meus patrões conheciam o movimento. Me disseram que os integrantes eram invasores. A visão que eles tinham de mim mudou totalmente. Comecei a debater com eles e não me convencer com discursos vazios. Também passei por um processo de transformação.
Em que sentido?
Comecei a perceber meu bairro, notei que não tinha uma creche em horário integral para meus filhos. Comecei a ver que o posto de saúde era longe, que a Delegacia da Mulher estava no centro, totalmente inacessível para nós.
Quais são os principais projetos da senhora na Alesp?
A Frente Parlamentar pela Valorização do Trabalho Doméstico e de Cuidado é uma pauta fundamental. Queremos fazer um censo para entender como estamos. Mesmo com a PEC das Domésticas, 3 a cada 4 trabalhadoras continuam na informalidade.
Também criei um PL (projeto de lei) para criar a Casa da Doméstica, um ponto de acolhimento para as mulheres que trabalham como domésticas.
Hoje, quais são as principais demandas das trabalhadoras domésticas?
Ainda existe muita informalidade. Várias de nós não conseguimos nos aposentar por tempo de trabalho. Também está em curso um processo de uberização, com as plataformas [de recrutamento de trabalhadoras domésticas por aplicativo], que precariza ainda mais o trabalho.
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