Elas são ameaçadas por defender mulheres: 'Próximo passo é nos matar?'
O toque do interfone interrompeu a concentração de Laura Cardoso e Joaquim. Era noite de domingo, 19 de março. A mãe e o filho de 9 anos organizavam os últimos preparativos para a chegada de Benício.
Com 39 semanas de gestação, ela já estava em processo de indução do parto. Mais cedo, tinha instalado a cadeirinha do bebê no carro —um Ford Focus que passava parte do tempo estacionado em frente ao prédio onde a família vivia, na cidade de Pelotas (RS).
Valter, o marido de Laura, atendeu o interfone, desceu até a rua e voltou tão rapidamente quanto pôde. "Laura", disse ele, lívido, ao abrir a porta do apartamento.
"Colocaram fogo no nosso carro."
Antes que pudesse se entregar ao choque, o casal tomou providências práticas. Laura telefonou para o ex-marido pedindo que fosse até lá cuidar de Joaquim, filho de seu primeiro casamento.
Valter desceu com uma mangueira para apagar o fogo, àquela altura já controlado —um vizinho conseguira chegar antes dele com um extintor de incêndio, evitando uma explosão. A Brigada Militar logo chegou ao local.
Quando conseguiu se aproximar do veículo queimado, Laura se emocionou ao ver o que sobrara da cadeirinha de Benício —as peças de plástico quase totalmente derretidas.
Nos bancos da frente, notou uma marreta usada na construção civil e um galão de gasolina.
Então ela sentiu um calafrio. Naquela noite, por precaução, Joaquim foi dormir na casa do pai.
Um atentado?
Laura Cardoso tem 31 anos e é advogada especializada na defesa de mulheres e crianças. Uma de suas causas é o combate à violência obstétrica.
Uma de suas atribuições profissionais é tentar colocar na cadeia agressores —assassinos de esposas e filhas, estupradores, abusadores psicológicos. Não costumam ser criminosos óbvios, como os retratados nos filmes, séries e novelas. São, quase sempre, homens com trabalho fixo, que gozam de prestígio social e têm dinheiro.
Por isso Laura pensou que aquele não havia sido um incêndio acidental, como pareceram acreditar os policiais.
Meses antes, ela atuara em um caso cujo réu era investigado por mandar incendiar carros de pessoas que queria intimidar. Todos os raciocínios de Laura levavam-na a crer que se tratava de um atentado.
A rua em que vivia era uma das mais movimentadas de Pelotas, com carros estacionados por toda a sua extensão. Por que apenas o dela seria incendiado? E qual o sentido de atearem fogo a um carro em vez de roubá-lo?
Ela procurou afastar o pensamento e concentrar-se nas perdas materiais, que eram consideráveis —o carro não tinha seguro e a cadeirinha de Benício não tinha sido barata. Mas, ao relatar a história a amigas próximas, para quem mandou pelo celular as fotos do carro queimado, ouviu de quase todas a mesma preocupação.
Aquilo só podia ser uma ameaça. Ao se convencer disso, Laura concluiu que podia tomar uma única atitude para se proteger do suposto agressor: dar visibilidade à história.
No dia seguinte, foi ao Instagram e abriu uma live relatando os eventos. "Não vou parar", disse. "Isso não vai me amedrontar". Embora as frases fossem fortes, Laura estava com aparência abatida. Com as mãos de unhas vermelhas, enxugava a todo instante as lágrimas que escorriam sobre o rosto marcado por olheiras profundas.
Àquela altura, a advogada já sabia que o crime havia sido cometido por dois homens. Imagens das câmeras de segurança da rua mostraram a dupla em uma moto freando diante do veículo.
O que estava na garupa saltou rapidamente com marreta e galão nas mãos, quebrou o vidro, derramou a gasolina, ateou fogo e voltou a subir na moto, que saiu em alta velocidade. "Foi claramente uma tentativa de calar uma mulher advogada", disse Laura em entrevista a Universa.
"Advogadazinha burra"
Em abril deste ano, a seccional paulista da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB/SP) divulgou os dados de uma pesquisa em que 80,6% das entrevistadas afirmam ter se sentido ameaçadas no exercício da advocacia por serem ou defenderem mulheres.
Há um termo para essa prática: lawfare de gênero. O estudo foi realizado pelo grupo de pesquisa Carmim Feminismo Jurídico, da Universidade Federal de Alagoas, sob a coordenação da advogada Soraia Mendes. Foram consultadas 191 profissionais —que participaram do levantamento de forma voluntária e anônima— entre os dias 4 e 21 de abril de 2022.
As estratégias do lawfare de gênero incluem a prática de crimes contra o patrimônio —como o incêndio que Laura Cardoso diz acreditar ter sido um atentado—, difamação, violência sexual, perseguição virtual e outras formas de intimidação, inclusive jurídicas.
Podem levar à morte, como relata a advogada Claudia Luna, vice-presidente da área da mulher advogada na comissão de prerrogativas da OAB/SP. "A advocacia está colocando em risco não apenas a atuação, como a vida das mulheres advogadas", afirma.
Algumas das entrevistadas pelas pesquisadoras do Carmim Feminismo Jurídico mandaram relatos para as pesquisadoras.
"Antes de entrar na audiência, o agente prisional disse com todas as letras que eu iria morrer", contou uma. "Recebi ligações de número oculto de madrugada com ameaças de morte contra mim, minha filha de sete anos e minha cliente", escreveu outra.
Elas também afirmaram terem sido chamadas de "advogadazinha burra" e "meninazinha que não sabe o que faz" por colegas homens, durante audiências, além de ouvirem insinuações de que trocavam sentenças favoráveis por sexo com juízes e eram amantes de clientes.
Quase metade das advogadas (45,5%) disse já ter pensado em desistir da profissão devido a ataques. A quase totalidade delas (84,9%) afirma que tem a saúde mental e física "afetada em razão da violência sofrida".
"Tenho severas crises de enxaqueca, muita ansiedade e hoje estou estudando para me formar em gastronomia", relatou uma advogada. "Tive um surto psicótico e estou em acompanhamento psicológico e psiquiátrico", anotou outra.
Uma das entrevistadas contou ter tido "uma crise que me levou à síndrome de Takotsubo após receber ameaça feita pelo ex-marido de minha cliente". Conhecida como "síndrome do coração partido", a Takotsubo é uma cardiomiopatia desencadeada por estresse.
Protocolo de gênero
Diante dos dados da pesquisa, a seccional paulista da OAB decidiu criar um grupo de trabalho para elaborar um protocolo para guiar profissionais da área a atuarem de maneira ética e respeitosa com as mulheres.
"O protocolo vai mudar a forma como a OAB identifica violações sob a perspectiva de gênero. É um convite para que a entidade reconheça as métricas desiguais da advocacia em relação não apenas a gênero, como também classe e raça", explica Cláudia.
Embora o assunto esteja na ordem do dia das discussões da OAB, ela reconhece que mulheres advogadas sofrem ameaças há décadas, mas usualmente ficavam em silêncio.
Há 15 anos, ela recebeu ameaças de um cliente por telefonemas e cartas. Depois, em um caso em que defendia vítimas de violência sexual, teve o escritório arrombado, e o computador, roubado.
"Lawfare de gênero é um nome novo para uma prática antiga", afirma. Ela aponta um fator que considera essencial para o protocolo ter começado a ser produzido apenas em 2023: o fato de a seccional paulista ser agora presidida por uma mulher. "É preciso conscientizar a advocacia da própria desigualdade de gênero", afirma Patrícia Vanzolini, presidente da Ordem.
Um dos objetivos do protocolo a ser elaborado pela OAB/SP é assegurar assistência às advogadas agredidas. Este é um ponto sensível para a Ordem. Das advogadas ouvidas para a pesquisa pelo grupo de pesquisa Carmim, 87,9% disseram que, pela própria experiência, a OAB não prioriza a proteção delas contra a violência de gênero no exercício da profissão.
O protocolo a ser elaborado pela OAB —uma resposta à queixa sobre a falta de proteção feita pelas advogadas— terá semelhanças com o recém-aprovado pelo CNJ, o Conselho Nacional de Justiça.
No primeiro julgamento do CNJ após a aprovação do protocolo, o juiz Marcelo Scalercio, da 2ª Região do Tribunal Regional do Trabalho (TRT-2) de São Paulo, acusado de assédio e importunação sexual contra três mulheres, foi condenado à aposentadoria compulsória.
Essa é a pena mais grave entre as cinco previstas para processos administrativos contra juízes, de acordo com a Lei Orgânica da Magistratura.
A pesquisa realizada pela Universidade Federal de Alagoas mostra que a disputa entre advogados das diferentes partes é um dos focos do lawfare. De acordo com o levantamento, 65,2% das advogadas sofreram violência de gênero durante o processo por parte do colega de profissão do lado oposto.
Foi o caso da advogada Ana Carolina Fleury, 31, de Goiânia (GO).
Quando estava no começo da carreira, Ana Carolina Fleury —que é advogada familiarista e criminalista— trabalhou em casos "gravíssimos", envolvendo organizações criminosas relacionadas ao tráfico de drogas. Mas diz nunca ter se sentido tão ameaçada quanto depois de decidir atuar apenas na defesa de mulheres.
Há cerca de quatro anos ela estava em uma audiência de mediação e, no momento em que foi autorizada pela mediadora a falar, não conseguiu —o advogado de defesa a interrompia a todo instante "com muita agressividade", impedindo que concluísse as frases.
Ela conta ter pedido, repetidas vezes, para que o advogado a deixasse falar. "Então ele bateu na mesa", narra. "Apontou o dedo para mim e começou a gritar: 'Sua louca, descontrolada, histérica'".
Ana Carolina Fleury entrou com um processo contra o advogado, que ainda corre na Justiça.
"A ação criminal é um calvário para a mulher. Chegar até a sentença é vencer uma guerra. É como se tudo fosse feito para ela desistir. Se reúne coragem para denunciar o agressor, é frequentemente tida como vingativa", afirma. "Se sou a advogada da mulher, também sou considerada vingativa, histérica, interesseira, louca e feminazi."
Em outro caso, a advogada Ana Carolina Fleury passou a receber e-mails com ameaças de violência sexual de um homem investigado por perseguir mulheres. Hoje tem uma medida protetiva contra ele. "Fiquei com muito medo de ser estuprada", conta. "Tenho medo, mas não perco a coragem."
Uma das consequências das intimidações a que são submetidas constantemente, diz Ana Carolina Fleury, é a desaceleração do crescimento profissional. Todos os dias, ela dedica boa parte do seu tempo de trabalho ao gerenciamento das crises provocadas pelas perseguições e ameaças.
"Levo todas as ameaças a sério. Estamos lidando com casos de homens que agridem e matam as próprias filhas e esposas. Não fariam isso conosco?", indaga.
Ela tranca todas as portas do imóvel após entrar no escritório. "Ninguém encontra o endereço no Google. Essa é uma preocupação que um escritório que não é especializado em violência contra mulheres não tem. Pode ter site com endereço, conta no instagram", afirma Ana Carolina.
Curso de tiro
Em 90,4% dos casos em que as advogadas se sentiram violentadas, os agressores apontados eram homens, de acordo com a pesquisa. Em 39,9% dos casos, o ataque foi atribuído à "outra parte", ou seja, o acusado, como no caso envolvendo Laura Cardoso.
Quatro dias após ter o carro incendiado, Laura Cardoso deu à luz Benício. Quando o bebê tinha cinco dias, ela e o marido passaram a procurar um apartamento novo para morar. Usaram o dinheiro de uma vaquinha organizada pelos amigos para pagar a mudança e contrataram uma empresa para cuidar da segurança da família. Ainda não conseguiram adquirir um carro novo.
Laura recusou proposta para mudar-se com marido e filhos para o exterior, em um programa de proteção de testemunhas. "Teria que ficar totalmente anônima e esse não é meu perfil. Não quero deixar de viver", afirma. Não pensa em sair de Pelotas, mas vai se matricular em um curso de tiro e considera ter posse de arma.
"Vou mostrar para o agressor que não tenho medo. Apesar de todo o abalo psicológico que sofri, o que ele fez comigo me deu voz", afirma.
Até o momento, o rapaz que ateou fogo ao carro de Laura, o piloto da moto e o suposto mandante do crime não foram identificados. Embora as investigações apontem relações entre a ocorrência e o recente processo de violência doméstica no qual ela atuou na acusação, faltam provas contra o homem.
Quando Laura Cardoso teve o carro incendiado, Ana Carolina Fleury, de Goiânia, telefonou para a colega prestando solidariedade. De diferentes partes do Brasil, advogadas que enfrentam violência no exercício da profissão têm tentado se unir para formar uma rede de proteção e apoio —inclusive para prestar assistência jurídica umas às outras, nos casos em que sofrem intimidação jurídica.
"Qual será o próximo passo? É nos matar?", indaga Ana Carolina.
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