'Estava desacreditada do amor quando conheci minha esposa', diz Kenya Sade
A jornalista Kenya Sade tem o emprego dos sonhos para quem gosta de música: como responsável pela cobertura dos festivais para o canal Multishow, ela assiste aos shows mais disputados de camarote —-e, de quebra, ainda entrevista alguns de seus grandes ídolos.
Nessas ocasiões, Kenya faz um esforço para não bancar a tiete. Num show na Bahia, ficou ao lado de Caetano Veloso e Gilberto Gil. "É impossível não tremer na base com Gil e Caetano em Salvador", afirma. "Confesso que, nesse dia, tremi na base. Minha perna estava bamba, literalmente. Mas consegui entregar o trabalho."
O sucesso no jornalismo —aos 28 anos, ela é reconhecida como uma das melhores críticas de música do país— é acompanhado pela estabilidade no amor. Desde 2019, vive um relacionamento estável com a pintora Thamyres Donadio.
No final de maio, Kenya Sade deu a seguinte entrevista a Universa:
Universa: Como começou a carreira na TV?
Kenya Sade: Com um estágio na TV Cultura. Ali me apaixonei por televisão. Fiquei lá por 2 anos e saí para fazer um intercâmbio na Europa. Na França, conheci um programador da Trace, uma das maiores plataformas de cultura afrourbana do mundo. Então fui convidada para participar da implementação do canal no Brasil. Comecei em 2019 como curadora musical. Era apresentadora de um programa que estava na grade do Multishow. Depois fui chamada para fazer um teste para a Globo e passei. A emissora estava em busca de diversidade.
A paixão pela música nasceu com o trabalho na Trace?
Durante a faculdade de jornalismo, achei que não existia a possibilidade de trabalhar com música. Mas a Trace me deu a oportunidade de mostrar esse talento. Sempre fui curiosa. Nós, jornalistas, podemos falar de tudo. E eu queria falar de música.
Já ficou nervosa entrevistando artistas?
Muitos me perguntam isso achando que vou mencionar algum artista internacional. Mas o que mais me deixou tensa até hoje foi a cobertura do "Viva Salvador", com Caetano Veloso, Gilberto Gil, Ivete Sangalo e Luedji Luna. É impossível não tremer na base com Gil e Caetano em Salvador. Minha perna estava literalmente bamba antes de entrar ao vivo. Mas consegui entregar o trabalho.
Você se vê como uma referência para jovens negros que sonham em trabalhar com música na TV?
Sim. E isso, para mim, é uma grande responsabilidade. Sou filha dos anos 1990, cresci com poucas referências na televisão. Só colocavam pessoas pretas no lugar de subalternidade, de subserviência ou, no humor, de forma jocosa. Nunca me via representada naqueles papéis. A Glória Maria foi a primeira pessoa que me fez pensar que o caminho era possível.
Várias mulheres e meninas do Brasil me veem como essa possibilidade. Oportunidades geram novas possibilidades de existência. Já conseguimos atingir espaços com atrizes, atores e cantores negros. No entanto, no entretenimento, você não vê tantas pessoas pretas. Estou construindo a história de ser uma mulher negra de pele retinta falando de música.
Você pensa no seu poder de influência?
Penso e faço muita terapia. No Brasil, antes de ser mulher ou profissional, sou negra. Por isso me preparo, tenho foco e disciplina, por mim e por quem abriu as portas para eu estar aqui. Mulheres negras precisam ter uma autocrítica muito forte, porque não podemos errar. Tenho que fazer meu trabalho de forma excelente não apenas porque quero, mas porque tenho essa responsabilidade. Preciso ser duas vezes melhor para me darem atenção. E me provar o tempo inteiro.
Você e Thamyres Donadio estão juntas desde 2019. Como o relacionamento começou?
Em um aplicativo de relacionamentos. Eu estava desacreditada do amor, mas quando vi a Thamyres quis saber no que ia dar. Nosso primeiro encontro foi em um bar. Conversamos por quatro horas. Não nos desgrudamos mais. Moramos juntas há dois anos e nos chamamos por "esposa". Nunca tinha tido uma relação longeva.
Como foi falar sobre sexualidade com a família?
Desde os 15 anos, sempre fui assumidamente lésbica para minha família. Quando falei para minha mãe, ela já sabia e falou que estava tudo bem. Ela só tinha medo da homofobia, ainda mais porque sou uma mulher negra. Então ia sofrer em dobro.
Mas logo que eu e a Thamyres começamos a namorar, minha mãe sentiu dificuldades em falar para as amigas que tinha uma nora. Isso pela homofobia dos outros, não dela.
E com o resto da família?
Só falei "essa é minha namorada" e todo mundo aceitou. Bom, eu acredito que aceitou. As pessoas associam certos comportamentos à sexualidade. Se você não usa determinada roupa falam 'essa menina aí vai mudar de time'. Eu escutei isso desde pequena. Não usava o vestido ou a sandália que minhas primas usavam. Já havia a desconfiança de que eu não era hétero.
Minha família é respeitosa, mas não fala sobre o assunto. É um silêncio sepulcral. Todo mundo faz fofoca sobre outros casais, exceto sobre minha esposa e mim. Isso também é homofobia, porque nos invisibiliza.
Acredita que a sociedade está mais preparada para casais lgbtqiapn+?
Está sendo mais impactada por essa realidade. Os casamentos homoafetivos no Brasil duplicaram. Antes, tinha medo de sair de mãos dadas na rua com a Thamyres. Tinha medo de levar paulada, de que grupos supremacistas e lgbtfóbicos nos atacassem. Hoje tenho menos, mas o Brasil ainda é o país que mais mata pessoas lgbtqiapn+. Esse dado é muito forte.
Porém, fala-se mais sobre o tema, há casais nas novelas. Hoje, quando posto uma foto com declaração para Thamyres, sinto que as pessoas se identificam no amor. Não dá para ser lgbtfóbico e racista em 2023. Sinto que avançamos.
Como esses preconceitos aparecem no seu cotidiano?
O racismo acontece no subliminar. Um estádio inteiro gritando 'macaco' para o Vinícius Jr. comove porque é escancarado. Mas o das entrelinhas está no nosso cotidiano. O Brasil é um dos países mais racistas do mundo. Já sofri racismo no trabalho, por impressionar demais. Já ouvi 'Nossa, como você é inteligente' ou 'Você fala inglês bem mesmo'. De onde vem essa surpresa?
É da construção racial, por não enxergarem pessoas pretas como intelectuais. Uma pessoa branca jamais ouviria isso. Já aconteceu de eu estar no avião, e sou classe diamante porque viajo muito, e a aeromoça perguntar se aquele era realmente meu lugar. Para qualquer criança preta, a escola foi um pesadelo. Pois falam do tamanho da sua boca, dos nossos traços negróides, do tamanho do nariz, do cabelo e da cor da pele. Somos impactados pelo racismo diretamente desde a nossa infância e isso nos desumaniza.
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