Patricia H. Collins critica 'empoderamento' para 'vender batom'
"Não vou gritar porque não tenho voz para isso e preciso preservar o pouco que me resta", disse Patrícia Hill Collins, com um copo de café de 500 ml no barulhento Starbucks, nas proximidades da avenida Paulista, em São Paulo. O movimento de gente e a música alta do local dificultavam a comunicação, mas a socióloga americana, uma das maiores intelectuais do mundo, não se alterava. Quase afônica, com a saúde afetada pelas alterações climáticas do outono paulistano, respondia às minhas perguntas com delicadeza, entre gargalhadas, sem perder a linha de raciocínio.
De passagem pelo Brasil, a socióloga cumpre extensa agenda profissional. No dia seguinte ao nosso encontro, encontraria Mano Brown, em bate-papo organizado pela Boitempo, que edita seus livros no país. Na sexta (9), falou para a audiência da Feira do Livro do Pacaembu, realizada no estacionamento do estádio. Hoje, 16, conversará com o público do LED Festival, da Globo, no Rio de Janeiro —o tema do painel é "Educação Crítica: uma janela para novas possibilidades".
Patrícia caminha pelo bairro dos Jardins como uma local. Está hospedada na região da rua Haddock Lobo há semanas e tem visitado diversos locais a trabalho, mas tirado um tempinho para passeios que lhe interessam, como visitar um terreiro de candomblé e fazer aulas de samba. Pergunto se ela é sempre assim, alegre: como é possível militar sorrindo? A intelectual discorda com estranhamento. "Feliz, eu?" Afirma que o sorriso que vejo nas fotos é o "brazilian smile", como as pessoas próximas apelidaram.
"Seguramente é a energia brasileira. Quando venho para cá, abraço as pessoas, converso, rio mais. E volto para casa querendo dar abraços também, dos quais os conhecidos se esquivam se perguntando o que houve comigo", diz, gargalhando. Entre tosses e risadas, ela conta que acaba de escrever um novo livro chamado "Lethal Intersection: gender, race, violence", que deve ser lançado nos Estados Unidos em outubro.
"Terminei há três semanas. Deve ser por isso que estou doente. Foi um projeto comprido, meu produto da pandemia", afirma. Diz que não suportaria os deadlines do jornalismo: para ela, é importante desacelerar. Férias? Faz uma careta e pergunta o que isso quer dizer. Entretanto, afirma que seu trabalho, por muitas vezes, nem parece trabalho.
Collins traz seu sorriso brasileiro para essas terras com frequência. Dessa vez, trabalha na divulgação da obra mais recente traduzida para o português, "Bem mais que ideias", em que dialoga com movimentos sociais e a realidade histórica para debater o conceito da interseccionalidade, amplamente discutido no livro homônimo, de 2020. Sua obra "Pensamento Feminista Negro", de 1990, completa a tríade de livros traduzidos em português. "É um jogo longo. O importante é não abandonar a partida quando você sente que vai perdê-la", ela diz.
Entender e explicar a complexidade do mundo
"O gênero, a raça, a sexualidade e a classe social moldam-se mutuamente. A interseccionalidade é uma forma de entender e explicar a complexidade do mundo, das pessoas e das experiências humanas", escreve no livro em que discute o termo sistematizado pela teórica feminista americana Kimberle Crenshaw, em 1989 —e fundamental para os feminismos negros, do qual Collins é uma das principais pensadoras.
"Minha arma é o poder das ideias", disse, sob aplausos, para os admiradores que disputaram espaço para ouvi-la no estacionamento do Pacaembu, durante a Feira do Livro, e depois enfrentaram longas filas à espera de um autógrafo.
"Nos Estados Unidos, querem que eu explique a interseccionalidade para que possam discordar de mim. Eu não vou fazer isso. Não seria inteligente de minha parte. Se quer discordar de mim, leia o livro", diz, contrariada. Durante nosso café no Starbucks, pergunto-lhe qual o papel dos brancos na luta antirracista. "Essa é a pergunta certa para a pessoa errada. Não me venha com a fragilidade branca. Eu não vou responder. As pessoas podem pesquisar por si mesmas", afirma.
"Violar o espírito da palavra me deixa brava"
Na avaliação de Patricia Hill Collins, é preciso recriar o conceito de família —que considere novos arranjos— em vez de rejeitá-lo pela associação com o pensamento de direita. "Os nazistas eram gênios em manipular ideias e usaram o conceito de família, porque tem apelo, afirma.
Do mesmo modo, diz a socióloga, palavras como "empoderamento" e "feminismo", quando usadas sem dimensão política, acabaram por ser esvaziadas na contemporaneidade. "Por isso escrevo livros sobre interseccionalidade. Para desacelerar o processo em que a palavra não é mais conectada ao seu poder inicial", diz. "Tem gente que vende batom dizendo que você se empodera se usar o produto. Isso viola o espírito da palavra e me deixa brava".
O Brasil de 2023
Patricia Hill Collins esteve no Brasil em 2022 e, desta vez, diz ter sentido o país diferente. "Parece que dá para respirar de novo. A energia das pessoas é maravilhosa. Nas faculdades, há gente positiva, olhando para o futuro. Precisamos nos voltar para a juventude como a geração do agora e o Brasil faz isso muito bem".
"Nunca estive com brasileiros desencorajados. Sempre encontro quem esteja pensando, escrevendo e lutando", afirma. Em São Paulo, conheceu um cursinho preparatório de vestibular e ficou encantada com o que viu. "Dizem que alunos do ensino médio não ligam para nada, mas eles estão ali estudando aos sábados e domingos com professores que são universitários voluntários. E os pais se juntam para fazer almoço. Isso é desenvolvimento em comunidade", conta, empolgada.
Em compensação, ficou chocada ao presenciar, na avenida Paulista, a ação de policiais com cachorros tirando da calçada pessoas em situação de rua.
Leitora de Djamila, Conceição e Marielle
Por muito tempo, Collins não leu autores brasileiros por falta de tradução para o inglês. As tecnologias de tradução online derrubaram essa barreira e, agora, ela tem lido a filosófa Djamila Ribeiro, a escritora Conceição Evaristo e a vereadora Marielle Franco, assassinada em 2018 — "que não é escritora, mas é uma intelectual gigante".
"Tenho me aproximado respeitosamente das ideias dela. Conheci uma pessoa que foi presenteada por Marielle com um livro meu. Isso me fez ganhar a viagem", afirma. Ela finaliza a conversa lamentando não ter conseguido treinar a língua portuguesa —que ela tenta aprender— durante a viagem ao Brasil. "Não estou conseguindo falar", diz, com sua voz rouca.
Recomendo que use própolis para aliviar a dor na garganta. Patricia Hill Collins, que nunca havia escutado essa palavra, pede-me para explicar do que se trata. Quando escuta que o medicamento é natural e deriva do mel, tira rapidamente um post it e uma caneta da bolsa e me pede para anotar o nome. Ela lê a palavra, repetindo sílaba por sílaba.
Se for para garantir o alcance de sua voz, vale tentar de tudo.
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