'A Xuxa era minha babá enquanto minha mãe apanhava', conta Ikaro Kadoshi
O constante sorriso de Ikaro Kadoshi confirma uma trajetória de sucesso no trabalho. Formado em jornalismo, já apresentou o programa "Drag me as a Queen", do canal E!, na companhia de Rita Von Hunty e Penelopy Jean, e também participou da transmissão do Oscar 2022 para o canal TNT. Agora, pode ser visto na Amazon Prime, à frente da "Caravana das Drags", ao lado de Xuxa.
Mas o que o semblante descontraído de Kadoshi não revela é sua trágica história familiar. Aos 3 anos, era trancado no quarto pela mãe, com a TV ligada em volume alto, para que ele e os irmãos não a ouvissem apanhar do marido. Como as surras ocorriam durante o horário do "Xou da Xuxa", o garotinho tinha na figura da Rainha dos Baixinhos uma espécie de protetora —e, quando ela subia na nave cenográfica para encerrar o programa, ele chorava, amedrontado, de volta à solidão.
"Meu pai era alcoólatra, batia na minha mãe praticamente todos os dias e tentava nos matar com uma faca", conta. "Durante muito tempo, Xuxa foi a parte mais lúdica do meu dia, uma das partes mais doces da minha infância", diz. Em entrevista a Universa, Ikaro Kadoshi —que, antes de se tornar uma estrela da TV, trabalhou em locadora de vídeo e apresentando-se em boates— relembra essa e outras histórias.
Como se tornou uma drag queen?
É um clichê, mas a arte me escolheu. Fiz jazz e teatro na infância e adolescência. Aos 16, vi uma drag queen pela primeira vez e me encantei. Ficava no camarim das baladas conversando com as drags e uma delas, a Romana Rose, gostava de mitologia grega. Foi ela quem disse que meu nome seria Ikaro. Um ano depois, em 2000, Ikaro nascia. Quando me montei pela primeira vez, percebi que tinha sido criado para aquilo.
Guilherme Terreri, a Rita von Hunty, disse no podcast "Desculpa Alguma Coisa", de Universa, que toda drag queen é política. Concorda?
Sim, mesmo que nem todas saibam. A drag questiona o mundo e a construção social de masculino e feminino. As pessoas olham para mim e perguntam: "Mas é o Íkaro ou a Íkaro?", pois tenho um nome masculino, mas estou vestido com símbolos femininos. Ao despertar esse questionamento, já fiz a minha arte.
A fama protege você do preconceito?
Sofro vários preconceitos. Acredito que as drag queens, junto com as pessoas transexuais e travestis, são as linhas de frente dessa batalha, pois sofrem muito mais preconceito do que as outras letras. Recebo ameaças de morte por direct do Instagram.
O que escrevem nas mensagens?
"Você é uma aberração", "não deveria existir", isso todos os dias. A inclusão digital demonstra exclusão de caráter. As pessoas se aproveitam do anonimato das redes para praticar violência. Minha luta é para que não matem os meus.
Você é uma referência entre as drags. Também deve receber mensagens agradecendo por isso, não?
Também escrevem "você mudou a minha forma de pensar o mundo", "você mudou minha forma de entender as pessoas", "você me ajudou a me aceitar". Quando leio isso, sinto que tudo vale a pena ---inclusive os preconceitos que sofri para chegar até aqui.
Como aprendeu a se maquiar?
Com as mães drags, como chamamos as mais antigas do que nós. Aprendi a maquiar sentada no vaso sanitário do banheiro, olhando, fazendo perguntas. Quando aprendi a receita, comprei tudo o que precisava e comecei a praticar todos os dias, cinco ou seis vezes. Maquiagem é firmeza no traço. Quando comecei a me montar, demorava três horas. Hoje, levo uma.
Não vejo a maquiagem como algo superficial. Aprender a me maquiar me ajudou a aceitar a minha beleza. Conheço todos os centímetros do meu rosto.
De todas as pessoas que já entrevistou, quem deixou você mais emocionado?
A Xuxa. Venho de uma família de extrema violência. Minhas primeiras memórias, com 3 ou 4 anos, são da minha mãe me jogando por cima do muro porque meu pai estava com uma faca tentando nos matar. Ele era alcoólatra e batia na minha mãe praticamente todos os dias.
Quando sabia que ia apanhar, minha mãe nos trancava no quarto e ligava a TV no programa da Xuxa, porque as surras costumavam ser pela manhã. Então ia para um cômodo mais distante para apanhar sem que a gente ouvisse. A Xuxa era nossa babá.
No final do programa, quando a Xuxa entrava na nave e ia embora, eu chorava desesperadamente. Durante muito tempo ela foi a parte mais lúdica do meu dia, uma das partes mais doces da minha infância.
Com essa história tão dramática, como se define?
Sou sobrevivente. Me assumi gay aos 13. Mas, quando tinha 9, minha mãe me mandou ir à padaria comprar pão. Estava de chinelo, uma bermuda de tactel e uma camisetinha. Passou um cara de bicicleta, me chutou no chão e falou: 'viadinho!'. Nunca tinha ouvido essa palavra.
Cheguei em casa chorando e perguntei para a minha mãe o que era aquilo. Ela explicou e me disse para ficar tranquilo.
Quando me assumi, mamãe foi a pessoa mais incrível do mundo. Ela sempre me disse para nunca deixar de ser quem eu era. Então decidi que não viveria uma vida de mentiras e contei para toda a família que era gay.
Meu avô começou uma jornada sem fim para "me tornar homem". Quando eu tinha 13, ele me levou para ser exorcizado por seis freiras. Aos 14, ao prostíbulo — e pagou para uma prostituta me estuprar. Mas consegui escapar, saí correndo pela janela. Depois me levou para a hipnose.
A última tentativa foi em um psicólogo, que em 10 minutos de sessão me mandou sair da sala, porque eu não precisava de tratamento. Ouvi do meu avô que não tinha mais jeito, pois nada do que ele tinha tentado prestava. Esses traumas forjaram minha vida.
Quais as consequências disso na sua vida?
Tenho dificuldades de relacionamento, de confiar nas pessoas. Mas tive a sorte de encontrar pessoas que me amaram. Acredito em um divino que me criou à sua imagem e semelhança. Não sou um erro, uma aberração. Sou a prova viva de que o amor de Deus transforma tudo.
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