Em livro de advogada de atrizes, mulher protege abusador por 'admiração'
Uma jornalista feminista que protege um amigo acusado de estupro. Que equilibra uma carreira brilhante, um caso extraconjugal e as lembranças, agora nubladas pela culpa, de uma militância em defesa das mulheres. É apenas por meio da ajuda de uma rede de amigas que ela decide o que fazer com agressor e, tão importante quanto isso, vasculhar os caminhos do próprio desejo.
O mote do novo livro da advogada Mayra Cotta, "Um ex-amigo", recém-lançado pela editora Paralela, tem notas que lembram um fato da vida real que a tornou conhecida, a acusação de assédio sexual que ela move em nome de Dani Calabresa e outras sete atrizes contra o ex-diretor da TV Globo Marcius Melhem. Mayra nega que haja paralelos propositais, mas pondera que eles existem porque violências como essas são "banais", tamanha frequência com que acontecem.
"Um ex-amigo" tem pegada vibrante, apesar de tratar com seriedade assuntos densos. Cenas de sexo —consentido e bom— colorem as páginas, e reflexões libertárias, sobre objetificação, por exemplo, podem fazer tremer as feministas mais ortodoxas. Ela falou a Universa:
Universa: "Quando se trata de relacionamentos, nem sempre é possível se manter coerente com o feminismo". Esta é uma das frases da protagonista do livro, Alma, uma jornalista feminista. Ela se relaciona com homens que têm desvios de caráter no que se refere a mulheres. Um deles é acusado de estupro. Alma também fala: "Ser objetificada e despertar tesão são parte central do meu prazer com ele. (...) Ele não demonstra muito entusiasmo pela minha inteligência, tampouco se impressiona com o meu sucesso profissional --me quer porque me acha gostosa, e eu adoro isso nele". Todas nós lidamos com sentimentos contraditórios. O tesão não se conecta ao textão, necessariamente, não é mesmo?
Mayra Cotta: Eu não queria construir uma personagem perfeita, uma feminista super coerente. E nem um caso de violência sexual muito evidente, vindo de um cara horroroso. Seria sem graça. Me interessa o que é complexo. E não tem nada mais complexo do que você amar uma pessoa que te faz mal. A objetificação é uma dessas complexidades. Somos construídas socialmente para sermos objeto de desejo. Aí vem o feminismo e diz que esse é um lugar de opressão. E algumas de nós falamos: a gente não pode se deixar ser objetificada de jeito nenhum! Esse é um jeito binário de lidar com a situação. E não é isso, não é um pode/não pode. A objetificação faz parte da construção do desejo. O interessante é a gente conseguir ser objetificada nos nossos termos, de uma forma que seja empoderadora e não opressora.
Há semelhanças entre o ambiente de Alma no romance e o que você transita, já que você é uma advogada que se especializou em casos de abuso sexual, é feminista e tem mais ou menos a idade dela. Estamos diante de uma militante que, por meio deste livro, abre a guarda e fala dos caminhos tortuosos dos afetos?
Toda escrita traz uma exposição da pessoa que está escrevendo. Por mais que a gente construa personagens fictícios é sempre um pouco sobre a gente que se está escrevendo. Participei de grupos feministas militantes, li teoria crítica de gênero; então, esse ambiente faz parte da minha formação. Mas não acredito no feminismo que é entendido como um conjunto de comportamentos individuais das mulheres. Feminismo é sobre mudanças estruturais. Elas precisam acontecer para que a gente possa viver da forma que quiser. Essas ambivalências que a gente sente, as dificuldades em navegar nos relacionamentos, não vêm de uma falha individual nossa, mas da sociedade, que nos educa de maneira a nos impedir de sermos feministas em todas as expressões. Eu não quero nos desresponsabilizar pelas nossas práticas, mas a transformação feminista vai acontecer quando a gente lidar com as estruturas de opressão, e não com o apontamento de dedo nas falhas de cada uma de nós.
Quase nenhum homem do livro presta. Nem nomes você deu a eles. São tratados como "o ex-amigo", "o amante esporádico", "o chefe". A protagonista diz que homens não são amigos entre si --apenas competem--, que só ajudam as amigas mulheres porque querem alguma compensação sexual e que usam as amigas feministas como "escudeiras" para chancelaram posições duvidosas de aliado. Não soa caricato?
Do jeito que você falou, sim. Mas não acho que seja assim que está no livro. Tanto que por esses três homens a protagonista cultiva algum tipo de amor ou admiração. O fato de os personagens masculinos não terem nome é para pensarmos nas posições que os homens ocupam nas nossas vidas. Há diferenças nas relações construídas entre homens e mulheres. Com as amigas, as relações são sempre vibrantes, têm apoio mútuo, correspondência. E as com os homens, no livro, são desbotadas, mais pobres. Não é um ataque aos homens individualmente. Seria muito fácil escrever um livro dizendo que eles não prestam.
Há paralelos no romance com o caso das atrizes que você defende. Um deles é que amigas se reúnem, orientadas por uma advogada, para decidir o que fazer com um conhecido que está envolvido em casos de abuso sexual. O que essas correspondências dizem aos leitores que também acompanham o caso da vida real?
O livro foi escrito antes de eu entrar nesse caso. Não vejo muitos paralelos, mas a questão é que é banal, recorrente, esse tipo de caso, bem como o tipo de resposta que a gente vê da sociedade e as ambivalências das relações que estabelecemos com homens que são muito próximos da gente.
Falando sobre temores que teve ao publicar a obra, você disse em uma entrevista: "Não podemos ter medo do que os outros vão achar da gente". Você não tem medo nem de uma avalanche de críticas de movimentos feministas?
Superar esse medo de as pessoas pensarem "será que ela protegeu mesmo um cara que praticou violência sexual? Será que ela tem um caso com um cara casado?" é importante, na medida de deixar essas questões postas e uma mulher ler o livro e pensar, "caramba, eu estive nessa mesma situação". Quando a gente começa a se identificar nas mesmas posições, entende que o problema não está na gente. O problema não é meramente individual. E gerar essa identificação requer que falemos das questões que são comuns a nós. O livro é para pensarmos de onde vêm esses tensionamentos --vêm da sociedade-- e o que é possível fazer com eles. Vamos parar de lidar com os problemas das mulheres como se eles fossem falhas de caráter, e ver por que é tão difícil para a gente responsabilizar um amigo por comportamentos que são nefastos às mulheres. Eles precisam ser corrigidos, transformados. O livro é um convite e não uma crítica a uma feminista de araque. Mas a crítica é bem-vinda, faz parte do processo de construção de ideias.
Os homens estão incluídos nesse convite ou essas são questões que nós, mulheres, pensamos melhor entre nós?
Espero que homens leiam o livro. O intuito não é fazê-los sentirem vergonha, admoestar publicamente todos os homens, mas fazer com que se reconheçam nessas práticas e entendam a profundidade que elas têm para as mulheres. Propositalmente, os homens do livro não são tão bem construídos quanto as mulheres; eles, além de não terem nomes, não têm falas. Então há esse incômodo de se verem representados de uma forma meio pobre. Eu gosto de brincar com isso. Os homens brancos estão acostumados a serem os grandes protagonistas, e aqui, estão num lugar bem secundário. A leitura é um convite para que eles sejam afetados e venham para o debate.
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