Cega, a bebê a guiava pela voz até o berço: a vida de mães com deficiência
O rosto das pessoas com deficiência no Brasil é feminino, de acordo com estimativa do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) a partir da recém-divulgada Pesquisa Nacional de Amostra de Domicílios Contínua —-do total de 18,6 milhões, 10,7 milhões são mulheres.
Não há dados sobre quantas dessas mulheres com deficiência são mães. Sem conseguir realizar muitas das tarefas básicas do trato com as crianças, como colocá-las no colo ou trocar fraldas, elas desafiam o estereótipo da mãe cuidadora ao mesmo tempo em que lidam com a invisibilidade.
A Universa, três delas relatam a rotina de mães atípicas.
Tetraplégica aos 28, com três filhos pequenos
Estava com 28 anos quando, em um dia quente de janeiro, fui com minha família para o clube. Meu filho mais velho, Luan, tinha 8 anos, e os gêmeos Juan e Loha, 2. Apliquei o protetor solar nas crianças e pensei: 'Vou dar um mortal'.
Eu tinha noção da profundidade da piscina, que não era tão funda, mas mergulhei mesmo assim. Lembro de bater e ficar parada. Vi sangue, pois cortei a cabeça, e meu corpo estava inerte. Achei que fosse morrer afogada. Retiraram-me da piscina. Os bombeiros demoraram uma hora para chegar. Fui operada e tive alta depois de uma semana. Não tinha noção da gravidade, achava que os movimentos iam voltar aos poucos. Mas não foi o que aconteceu.
Eu havia deixado de trabalhar para cuidar dos meus filhos. De repente, não conseguia exercer a maternidade. Isso foi bem difícil. Meu marido e eu decidimos que o mais velho ficaria com a gente e os gêmeos iriam morar com meus pais, pois eu dependia de ajuda para tudo e não teria como cuidar de três.
Eu sofria de saudades dos dois, chorava demais. A gente se via e falava por chamada de vídeo, mas eu acabava fazendo um papel de tia, uma pessoa que só mimava. Fiquei deprimida, engordei e o peso passou a atrapalhar mais minha mobilidade.
Dois anos se passaram até que eu conseguisse me sentir melhor, voltar a cozinhar. Então decidi que era hora dos meus filhos voltarem para casa.
Acho que foi tranquilo, para eles, me ver na cadeira de rodas.
Eles não se lembram da mãe andando. Josye
Mas precisei fazer algumas adaptações em casa. Coloquei colchões ao lado da cama para eles dormirem ao meu lado e para que eu pudesse rolar e alcançá-los com as mãos, se precisasse. Até hoje, quando ficam doentes, eu faço isso.
O banheiro já era adaptado, então eu conseguia entrar com a cadeira e ajudar no banho, lavar as orelhas deles. Sou uma mão cuidadosa e zelosa como qualquer outra. O que talvez eu faça de diferente das outras mães seja incentivá-los a ser autônomos, aprender a cozinhar e tomar ônibus.
Josye Cartaxo, 38, do Rio de Janeiro, é mãe de Luan, 18, e dos gêmeos Juan e Lohan, 12.
Com medo de ser "menos mãe" da filha, recusava ajuda
Nasci com um glaucoma congênito e visão baixa. Com 5 anos, comecei a fazer natação e tornar-me paratleta foi um caminho natural. Em 2008, quando voltei das Paralimpíadas de Pequim, perdi a visão do olho esquerdo.
Cinco anos depois, eu estava mexendo no celular quando vi um preto no canto do olho. Achei que fosse cansaço, tirei um cochilo e, ao acordar, já não enxergava mais nada. Fui levada ao pronto-socorro oftalmológico e o médico constatou que eu havia descolado a retina. Determinou que eu fosse operada imediatamente.
Havia a expectativa de que eu voltasse a enxergar em 20 dias. Mas isso não se confirmou. Em seis meses, retornei aos treinos. Em 2014, competi no mundial da Escócia como cega.
Quando perdi a visão do primeiro olho, quis ter uma criança para poder olhar para ela, para o caso de perder a visão do outro. Eu tinha um namorado, mas não rolou. Um tempo depois da cegueira, terminamos.
Então voltei a me relacionar com um namorado de adolescência, o Naldo, e engravidei. Diziam-me que eu deveria ter um filho para cuidar de mim depois que meus pais se forem. Também ouvi que minha mãe, com quem ainda morava, poderia cuidar da criança.
Naldo e eu decidimos morar juntos. Quando Clara nasceu, eu morria de medo de que alguém pudesse ser mais mãe dela do que eu. Então recusava as ofertas de auxílio. Sofri horrores. Depois entendi que devemos pedir ajuda.
Meu quarto é integrado ao da minha filha. Quando ela chorava de noite, conseguia escutar, ir até lá e dar o peito. Conheço minha filha pelo toque. E, a partir dos sete meses, ela passou a perceber que precisava me guiar, pelo som. Eu chegava ao quarto, perguntava por ela e, ao ouvir minha voz, ela começava a balbuciar, até que eu chegasse ao berço.
Durante o ano em que fiquei em casa cuidando da minha filha, nunca houve nenhum acidente.
Embora cega, nunca perdi minha filha pela casa. Regiane
Conto também com o auxílio da Cindy, uma cão-guia que me acompanha desde antes da gravidez.
Posso dizer que tenho uma rotina normal de mãe. Meu marido e eu levamos Clara para a escola todos os dias. Eu chorava pensando que não ia ver os espetáculos dela, apreciá-la pintada de coelhinho, conhecer a sua letra quando começasse a escrever. Mas a maternidade está sendo sensacional. Vivo as experiências.
Regiane Nunes, 38, de Ribeirão Pires (SP), é mãe de Clara, 1
Diagnosticada com autismo após laudo da filha
Ao longo da vida, em meio a crises, fui internada algumas vezes em hospitais psiquiátricos. Cheguei a ser amarrada. Recebi diagnóstico de bipolaridade, transtorno de personalidade e borderline. Só recentemente tive a certeza de que os diagnósticos estavam errados. Descobri que sou autista.
Essa descoberta ocorreu após o diagnóstico da minha filha Ana Laura, hoje com 2 anos. Notei que havia algo diferente nela logo após o nascimento. Ela não olhava para mim enquanto mamava e tinha dificuldade em sugar. Depois, demorou para andar e engatinhar. Ela sempre teve muita estereotipia, que são os movimentos repetitivos. Balançava as mãos e ficava um tempão olhando para elas fixamente. Passava boa parte do dia de cabeça para baixo, como uma avestruz.
Conforme fui acompanhando a Ana Laura nas terapias, comecei a ouvir que também tinha características de autismo, como as estereotipias. Ando muito de um lado para o outro, acho difícil ficar parada e tenho ecolalia —repito o que a outra pessoa fala. Assim também fui diagnosticada com autismo.
Preciso de apoio para as tarefas diárias. Fernanda
É complicado sair na rua, pois os estímulos visuais e auditivos me levam a crises. Em casa, para realizar as tarefas diárias, preciso de um painel com pictogramas, figuras que me indicam a sequência das atividades.
Não faço nada sozinha. Moro com meu pai de 64 anos. Ele é bancário, trabalha por seis horas e no resto do dia fica comigo e com minha filha. Ele me leva para a faculdade de psicologia, depois deixa a Ana Laura na creche. Temos ainda a companhia de uma terapeuta. Preciso de suporte para exercer meu papel de mãe por completo.
Minha filha odeia andar de carro e sempre grita e chora a caminho das atividades. Isso me afeta demais. Quando ela está em crise, fico desregulada e acho difícil dar acolhimento. Quando sou eu quem estou em crise, ela quer ficar grudada em mim. Assim, demoro a melhorar.
Passei a dividir minha rotina no Instagram (@paraquetabu). Recebo apoio e críticas. Dizem que eu não deveria ter uma filha, já que sou autista. É cruel. Atualmente, estou mais blindada. O que me preocupa mesmo é como vai ser quando meu pai faltar.
Fernanda Fialho, 26, do Rio de Janeiro, é mãe de Ana Laura, 2.
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